Opinião

Considerações sobre a nova CIR e o patrimônio rural em afetação

Intenção do legislador em ampliar possibilidade de crédito no setor agrícola deve prevalecer

10 de setembro de 2020

Por Ana Paula Machado e Ellen Carolina Silva*

Artigo publicado originalmente no Migalhas

No intuito de instituir medidas para ampliar o volume de crédito e financiamento de dívidas de produtores rurais, o Governo Federal aprovou em 7/4/20 a Lei 13.986/20 (nova Lei do Agro), originada da medida provisória 897/19 (MP do Agro). A nova Lei do Agro, além de aperfeiçoar alguns institutos que já vinham sendo utilizados por vários players do setor, criou novos títulos de crédito e novas formas de garantia de financiamento, como é o caso da Cédula Imobiliária Rural (CIR) e do Patrimônio Rural em afetação.

No texto originalmente trazido pela MP do Agro a CIR surgiu como um novo título de crédito, caracterizado como uma promessa de pagamento em dinheiro, cuja finalidade inicial era impulsionar o fornecimento de crédito apenas por Instituições Financeiras para Produtores Rurais. Contudo, a nova Lei do Agro alterou esse escopo inicial e estendeu o espectro da CIR para que esse título possa servir como uma promessa de pagamento em dinheiro relativo a qualquer operação de crédito contratada pelo proprietário de imóvel rural e não apenas daquelas contraídas em favor das instituições financeiras. Essa nova estrutura viabiliza a diversificação da modalidade de negócio praticada pelo mercado e até proporciona uma melhor pulverização de riscos.

Ao contrário de outros títulos de crédito que tem eficácia executiva mesmo sem uma garantia vinculada (CPR por exemplo), a CIR necessariamente requer a vinculação com o patrimônio rural em afetação constituído previamente para assumir características de um título executivo extrajudicial. Logo, muito embora a CIR admita como garantia adicional o aval,  também representa, no caso de inadimplemento do devedor, a obrigação de entrega imediata, em favor do credor, do bem imóvel rural ou fração deste, vinculado ao patrimônio rural em afetação, garantia principal da operação de crédito que lhe deu origem.

O patrimônio de afetação é figura que já aparece no ordenamento jurídico no setor imobiliário e consiste resumidamente na segregação de determinados bens para a constituição de um patrimônio distinto, que não responde por outras dívidas e obrigações senão os referentes àquele empreendimento.

Na nova Lei do Agro, a constituição do patrimônio rural em afetação visa garantir ao proprietário de imóvel rural o direito de submeter a sua propriedade ou fração dela, bem como suas acessões e benfeitorias a esse mesmo regime, ou seja, segregar tais bens para servir de garantia em quaisquer operações de crédito, lastreadas por meio da CIR ou da CPR. Importante ressaltar que a nova Lei do Agro deixou claro que o patrimônio rural em afetação é garantia hábil a figurar tanto na CIR quanto na CPR.

Além disso, desde que o patrimônio rural em afetação esteja vinculado a CIR ou a CPR e, na medida das garantias expressas na CIR ou na CPR a ele vinculadas, os bens e os direitos integrantes do patrimônio rural em afetação não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios rurais em afetação por ele constituídos, não se sujeitando também aos efeitos da recuperação judicial e da falência. Essa não sujeição é ponto importante a se considerar especialmente porque dá ao credor a segurança jurídica necessária de que poderá se valer da garantia se ocorrer o inadimplemento.

O patrimônio rural em afetação da forma como previsto na nova Lei do agro, possibilita maximizar o aproveitamento econômico do bem, viabilizando a concessão de fração dele em garantia sem o prévio desmembramento do imóvel. Na alienação fiduciária ou na hipoteca, ao revés, como se trata de garantias que recaem diretamente sobre o imóvel, este precisa ser perfeitamente individualizado e ter existência autônoma, não sendo possível que fração do imóvel seja objeto de garantia real sem que se proceda ao seu prévio desmembramento. A nova Lei do agro possibilita que a fração dada em garantia seja variável, isto é, que seja diversa para cada operação de crédito, postergando o desmembramento para o momento do eventual inadimplemento. O que se buscou foi possibilitar ao proprietário dar o imóvel em garantia com maior racionalidade e proporcionalidade ao valor do crédito.

Após o vencimento da CIR, não sendo liquidado o crédito por ela representado, o credor poderá exercer o direito de transferir o bem ou fração dele para a sua titularidade, sendo que, na segunda hipótese, o oficial de registro de imóveis efetuará o desmembramento e estabelecerá a matrícula própria correspondente. Antes do inadimplemento, a propriedade rural integra unicamente o patrimônio rural em afetação, de titularidade do devedor. Nesse ponto, é condição obrigatória no momento da emissão da CIR que a mesma contenha autorização do emitente para que o oficial de registro de imóveis processe, em favor do credor, o registro de transmissão da propriedade do imóvel rural, ou da fração, constituinte do patrimônio rural em afetação em caso de inadimplemento.

A eficácia executiva do título, além de estar vinculada à existência previa do patrimônio rural em afetação, existirá apenas após o registro ou depósito do título em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros e de valores mobiliários, no prazo legal. A nova Lei do Agro estabeleceu o prazo de 5 dias úteis contados da data da emissão do título para o registro nessas entidades.

Vale ressaltar que diante da falta do registro ou depósito do título, ainda que tenha sido constituído patrimônio rural em afetação previamente, a natureza jurídica executiva da CIR se esvaziará, pois esse é um requisito de validade do título, caracterizando-se tão somente como uma promessa de pagamento de natureza civil, fora, portanto, do direito cambial e de sua força.

Por fim, deve-se pontuar ainda que a CIR será emitida sob a forma cartular ou escritural/eletrônica e a legislação determinou que enquanto permanecerem depositadas nas referidas entidades autorizadas pelo BACEN, assumirão a característica escritural, permanecendo assim até a respectiva baixa nos sistemas de escrituração. Ademais, o registro ou depósito nestas entidades, além de dar força executiva ao título, permite que a CIR seja negociada nos mercados regulamentados de valores mobiliários.

No decorrer das discussões que deram origem à nova Lei do Agro, o que se verificou tanto com relação à CIR quanto ao Patrimônio Rural em afetação é que o legislador tinha o intuito claro de incrementar o portfólio de opções de garantias a serem oferecidas pelo produtor rural com o objetivo de impulsionar novas possibilidades seguras juridicamente de  concessão de crédito privado, seja por credores nacionais ou estrangeiros. Ainda que muitas questões sejam colocadas à prova em discussões futuras e que alguns pontos ainda dependem de regulamentação específica, acreditamos que deverá prevalecer a intenção do legislador em incrementar a oferta e possibilidade de crédito ao setor agrícola, com a segurança jurídica necessária às operações de crédito privado.

 

*Ana Paula Machado é pós-graduada em Direito Contratual pela PUC/SP. MBA em Direito Eletrônico pela Escola Paulista de Direito – EPD. Advogada do escritório Luchesi Advogados.

*Ellen Carolina Silva é pós-graduada em Direito Tributário e em Direito Empresarial. Master of Laws (LLM) em Direito Comercial Internacional pela Universidade da Califórnia. Sócia advogada do escritório Luchesi Advogados.

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