Opinião

Como lavar dinheiro com criptomoedas

É fundamental que as instituições já reguladas monitorem e comuniquem operações suspeitas

26 de maio de 2022

Por Walfrido Warde, Henrique Machado e Isac Costa*

Artigo publicado originalmente no Estadão

Aos 44 anos, Changpeng Zhao amealhou uma das maiores fortunas do planeta com a Binance, corretora que fundou e tem hoje a maior fatia do mercado global de criptoativos. Em visita ao Brasil, ele disse que “lavar dinheiro com cripto é muito difícil”. Nada poderia ser menos verdadeiro, sobretudo no Brasil, e CZ, como Zhao é conhecido, sabe disso – ou deveria saber.

As criptomoedas estão no radar do aparato de controle dos governos porque são frouxamente reguladas, dificultam a identificação dos seus donos e o rastreamento dos negócios que levam à sua transferência entre pessoas. É verdade que os registros são compartilhados em rede do tipo blockchain, que permite saber em que carteira as criptomoedas se encontram. Mas as autoridades não necessariamente conhecem a identidade dos proprietários. Isso possibilita a manipulação de mercado, a formação de pirâmides financeiras e a ocultação de recursos oriundos de crimes.

O uso das criptomoedas se dá mediante carteiras identificadas por códigos que funcionam como pseudônimos. Quem tem a chave privada da carteira tem os ativos. Na maioria dos casos, a negociação ocorre por meio de corretoras, as exchanges, que prestam serviço de custódia e controlam os ativos de seus clientes.

As exchanges agregam recursos de várias pessoas, segregando os saldos em um sistema contábil fora da blockchain. Em teoria, é possível recorrer às exchanges para identificar os clientes e obter seus dados cadastrais. Aí começa o problema.

Uma das principais regras de prevenção à lavagem de dinheiro exige que as duas instituições envolvidas numa transação conheçam os dados das partes envolvidas. Instituições reguladas, como os bancos submetidos à fiscalização do Banco Central, são obrigadas a identificar as pessoas. Se as exchanges não se sujeitarem a normas semelhantes, não há como garantir a existência de controles sobre os dados dos clientes, limites de valores e a origem e o destino de transferências.

Algumas exchanges alegam que, por não terem sede aqui, no Brasil, não estariam sujeitas às normas nacionais, atuais ou futuras. Atuando sem supervisão, chegam a oferecer, em alguns casos, serviços a investidores que podem ajudar a mascarar os beneficiários finais ou mesmo assegurar o anonimato.

Então, por que voar abaixo do radar se, como garante CZ, lavar dinheiro com cripto é muito difícil?

A verdade é que é fácil lavar dinheiro com criptomoeda. Há dois motivos para isso: 1) ausência ou insuficiência de verificação da autenticidade de documentos e validade de dados fornecidos na abertura de contas; e 2) inexistência ou ineficácia de controles da origem ou destino de transferências. Nessas condições, é possível misturar valores ilícitos com lícitos para trazê-los ao sistema financeiro nacional.

Uma cold wallet (carteira fora de uma exchange) cujas chaves não estão na internet pode facilmente ser o destino de recursos decorrentes de fraude, propina, extorsão ou outro crime. Alguém pode fragmentar esses valores em inúmeras operações que dificultam o rastreamento, inclusive para exchanges com controles flexíveis, usando até documentos falsos.

Hoje, as exchanges estrangeiras não prestam informações ao Fisco. Seus clientes podem fazer o mesmo (embora não devam), deixando à margem da tributação um volume relevante de transações. Ainda atuam sem o controle de destinatários das transferências de e para carteiras não custodiadas e com controles precários envolvendo contas correntes ou de pagamento (podem receber depósitos e transferir para contas de titularidade distinta). Como não são supervisionadas, não há garantia de que os controles anunciados existam de fato e de que sejam aplicados a todos os clientes.

Pode, assim, ocorrer uma espécie de “dólar cabo”, em que uma transferência em reais para uma instituição regulada corresponda a um pagamento em criptomoedas entre carteiras não identificadas.

Na passagem para o mundo real, se for necessário declarar os valores recebidos, pode-se justificar que esses recursos têm origem em mineração, arbitragem entre criptoativos, negociação de outros criptoativos, da venda de NFTs (non-fungible tokens) ou outras fontes de difícil comprovação.

Finalmente, é possível transferir esses valores por meio de uma instituição de pagamento autorizada pelo Banco Central ou até realizar saques em caixas automáticos. Pagando os impostos, o dinheiro está formalmente limpo. É fundamental que as instituições já reguladas monitorem e comuniquem operações suspeitas, para evitar que isso aconteça.

Quando se permite que exchanges com controles flexíveis acessem o sistema financeiro nacional, o País dá bom dia a um enorme cavalo de Troia. Ao contrário do que diz CZ, o chefão da Binance, exchanges podem ser lavanderias eficientes e filiais prolíficas da grande lavanderia chamada Brasil.

*Walfrido Warde, Henrique Machado e Isac Costa são advogados

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