O ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), negou ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), que questionava Habeas Corpus coletivos concedidos pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Em decisões recentes, o STJ, por causa da epidemia da Covid-19, permitiu a transferência para prisão domiciliar de presos que cumprem pena nos regimes aberto e semiaberto.
Ao indeferir a petição, Gilmar destacou que o Ministério Público é uma instituição que deve proteger a ordem jurídica e os direitos fundamentais, e não um órgão exclusivamente voltado para a acusação e obtenção da condenação do réu.
Ao Estadão, advogados especialistas em Direito Penal avaliaram a decisão como uma volta aos princípios constitucionais que deram origem ao Ministério Público.
Conrado Gontijo, advogado criminalista, doutor em Direito Penal e Econômico pela USP, diz que Gilmar mostrou compromisso com a Constituição Federal e com os direitos fundamentais. “Embora na ação penal o MP assuma a função de acusador, ele não deve desempenhar tal função a qualquer custo, em qualquer circunstância. Cumpre ao MP, antes de tudo, o papel de atuar para ver atendidos, nos casos concretos, os direitos e garantias fundamentais e a justiça, e de zelar por essas garantias. Portanto, é irretocável a decisão do ministro e é essencial que se faça uma reflexão mais profunda sobre essa questão essencial”, analisa.
Bruno Salles, advogado criminalista e sócio do Cavalcanti, Sion e Salles Advogados, destaca que a Constituição de 1988 “conferiu poderes extremamente alargados para o Ministério Público”. “Ao contrário de outros países em que há uma divisão entre o órgão acusador (a ‘fiscalía’ de países latinos) e o órgão de assessoramento (o próprio Ministério Público), no Brasil, concentrou-se todas as funções em um órgão só. O Ministério Público, assim, tem um desenho institucional que, além de competências em matérias difusas — como meio ambiente, urbanismo, educação, saúde e cidadania —, reúne a titularidade da ação penal, ou seja, a prerrogativa da acusação criminal, e também o papel de custus legis, o fiscal da lei. Assim, enquanto perdurar essa arquitetura que faz do nosso Ministério Público uma instituição sui generis, ele tem, sim, o dever de resguardar os direitos dos acusados, inclusive atuando na persecução penal para produção de provas absolutórias. Infelizmente, como emerge do voto do ministro Gilmar Mendes, isso raramente ocorre na prática”, avalia.
Já o advogado Daniel Gerber, criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, destaca a dificuldade do papel dos procuradores em casos específicos. E diz que o perfil híbrido do MP muitas vezes atrapalha a própria defesa. “Não obstante a posição constitucional do MP ser a de fiscal da lei e, consequentemente, ter a obrigação de defender o réu diante de inconsistências legais, exigir de uma pessoa física que em processos penais acuse e defenda ao mesmo tempo é não apenas inviável como também improdutivo e falacioso, gerando ao órgão acusador uma falsa impressão de imparcialidade que acaba por prejudicar a defesa. Dessa forma, apesar da boa intenção constitucional, o MP deve ser visto como parte acusatória no processo penal, longe de ter para si a aura de fiscal da lei que lhe acompanha nas demais áreas do Direito. É acusador, comprometido com a condenação, motivo pelo qual em nada ultrapassa ou se diferencia da parcialidade e compromisso que caracteriza o defensor técnico”, opina.
Já Almino Afonso Fernandes, advogado constitucionalista e sócio do Almino Afonso & Lisboa Advogados Associados, entende que a decisão é um olhar externo saudável para dentro do MP, hoje sob a mira da sociedade e da imprensa. “O sistema de Justiça é sustentado no tripé ‘juiz, Ministério Público e advogados’. Não necessariamente nesta ordem, claro. Porém, incumbe a esses atores velar pelo cumprimento das leis e promover as garantias dos direitos fundamentais, assegurados pela Constituição da República. Imaginar que órgãos da Justiça possam se submeter a projetos não republicanos que visem projeção pessoal ou corporativa através do aparelhamento do Estado é, no mínimo, subestimar a inteligência média do cidadão brasileiro. Por isso, há que se prestigiar o Ministério Público, para que não se estabeleça nas instituições uma terra sem lei, em que autoridades possam ser imunes ao sistema de controle social, tão natural numa democracia. Portanto, no Estado Democrático a Defesa de direitos não é monopólio dos advogados, mas de todos que estão ali a representar por delegação os interesses da sociedade”, enfatiza.
Cecilia Mello, titular do Cecilia Mello Advogados e que atuou por 14 anos como juíza federal no TRF-3, acredita que a decisão de Gilmar Mendes reforça a necessidade de uma constante reflexão sobre as funções constitucionais e essenciais à Justiça atribuídas ao Ministério Público, “que não pode extrapolar o contexto fático e probatório em nítida atuação persecutória desprovida de fundamentos”. “Partindo-se da premissa de competir a essa instituição a defesa e proteção dos direitos fundamentais mesmo no âmbito da sua atuação como parte nos processos penais, a lealdade processual e o respeito à verdade dos fatos investigados, parecem-me deveres intrínsecos ao exercício dessa competência. Em outras palavras, o princípio da lealdade e da boa-fé objetiva, que também vige no processo penal, deve ser constante e amplamente observado pelas partes, inclusive pelo Ministério Público”, diz.
No entender do advogado Diego Henrique, criminalista associado ao Damiani Sociedade de Advogados, a decisão do ministro do STF “é ‘cirúrgica’, contrariamente à constante tentativa reducionista de transformar a instituição em mero acusador, e faz prevalecer a dignidade constitucional do Ministério Público como ‘instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, exatamente como descreve o artigo 127 da Constituição Federal”.
O advogado lembra que o MP, ao fiscalizar o cumprimento da lei pela sociedade, deve lembrar que ele mesmo deve cumpri-la. “A tentativa de limitar a atuação do órgão à acusação é perpetrada diuturnamente por parte de seus membros, que esquecem seu dever constitucional de defesa dos interesses da sociedade, direcionando sua atuação à busca implacável por condenações a qualquer preço. Na verdade, atuar em defesa da sociedade no Estado Democrático de Direito significa trabalhar em favor de um ideal de justiça somente atingível mediante a observância estrita das normas previstas no ordenamento jurídico”.
Claudio Bidino, sócio do Bidino & Tórtima Advogados, mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Oxford, recorda o papel principal do Ministério Público: “O Ministério Público não pode deixar que os inúmeros poderes investigativos e acusatórios adquiridos nos últimos anos se sobreponham à principal função que lhe foi atribuída pela Constituição Federal: a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, afirma.
No escritório Fidalgo Advogados, a equipe de Direito Penal comemorou a decisão do ministro, que, segundo seus integrantes, deve aliviar a pressão sobre procuradores e promotores de denunciar em qualquer situação. Os advogados Alexandre Fidalgo, Jessica Thais de Lima, Maria Carolina Dantas e Giovanna Sousa contam ter trabalhado em raros casos em que o próprio Ministério Público reconheceu a inocência de réus, seja em pareceres, seja como parte acusadora.
“É uma pena que o STF tenha que reafirmar o óbvio. Quem trabalha com a Justiça criminal sabe que o Ministério Público atua, com raras exceções, como verdadeira parte censora nos processos, muitas vezes alheia a garantias e direitos fundamentais dos réus, como se o objetivo de toda instrução processual fosse a condenação, a todo custo”, afirma o sócio Alexandre Fidalgo. “Por isso, a brilhante manifestação do ministro Gilmar Mendes, relembrando que o Ministério Público é o defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais indisponíveis, serve de farol para os membros da instituição, que devem resguardar direitos constitucionais assegurados a todo indivíduo, inclusive o da ampla defesa e contraditório, recorrentemente ofendido pelo poder público”.
Bruno Borragine, advogado criminalista e sócio do Bialski Advogados, também enalteceu a decisão de Gilmar Mendes. “Está correta a interpretação do ministro sobre o papel e funções do Ministério Público. O MP não é órgão de acusação, mas sim uma instituição legitimada a propor acusações nas ações penais públicas. Ou seja, esta sutil, mas importantíssima, distinção de funções é essencial para deixar claro que o representante do Ministério Público, também quando atuante em campo penal, deve buscar sempre a defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis, no exercício de suas atribuições de maneira imparcial, despido de interesses pessoais voltados para a acusação a qualquer custo”.
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF