Opinião

Presos precisam de direitos básicos antes de alas LGBTQ+

Sistema penal ainda carece de condições mínimas de sobrevivência

22 de outubro de 2020

Por Sofia Coelho e Daniel Gerber*

Artigo publicado originalmente no Estadão

O Conselho Nacional de Justiça aprovou, recentemente, uma resolução permitindo que condenados sejam direcionados a cadeias conforme o gênero com o qual se identificam.

Com isso, gera a necessidade de alocação de verbas públicas para criação de alas específicas para a população LGBTQ+ dentro das unidades prisionais, incluindo a possibilidade de visitas íntimas e aumentando a segurança dos ali recolhidos.

Apesar de louvável a preocupação com todos os setores da população brasileira, a medida fere Direitos básicos dos demais destinatários da norma penal e reflete um momento histórico onde o Poder Judiciário abandona seu papel de guardião do Direito e passa a navegar no mar da política, decidindo casos, criando jurisprudências e fixando regras para atender anseios de grupos sociais.

Não bastasse o equívoco de se julgar em acordo com a política do momento, só mesmo o personagem Cândido, de Voltaire, poderia acreditar que essa decisão funcionará em acordo com as expectativas e, principalmente, com o Direito de todo e qualquer apenado em ter para si as condições mínimas de cárcere que a Lei de Execução Penal lhes destina.

Nessa linha, qualquer um que já teve a oportunidade de visitar nossos presídios e conheceu de perto as mazelas do sistema carcerário, entende o aqui afirmado, pois não se questiona a existência do Direito abstrato do cidadão “LGBTQ+” em se ver recolhido com seus pares; o que se afirma é a impossibilidade de sua concreta implementação sem que, para tanto, ofenda direitos básicos dos demais.

E aqui reside o ponto central do debate: ainda que certos Direitos existam, implementá-los se torna uma violência quando direitos precedentes e fundamentais ainda não tenham sido satisfeitos. No caso, a conta é simples. O sistema penal encontra-se – desde sempre – sem recursos que permitam gerar a todos o ambiente adequado e imposto por lei para cumprimento de pena. Significa dizer que parte das verbas que deveriam ser alocadas para se garantir o mínimo serão direcionadas para se garantir um plus.

O paradoxo é evidente, pois qualquer um consegue compreender que, em se tratando de verbas públicas, antes de todos terem o básico não se pode dar a alguns o excepcional. No caso, familiares de um preso heterossexual que habita uma cela de 12 metros quadrados com mais cinquenta e seis apenados estarão pagando, com seus impostos, a cela do LGBT+ que, por sua própria condição, terá mais espaço do que a de seu familiar.

Esse é o retrato do Justo que buscamos na destinação de verbas públicas?

Frise-se: em quase todos os presídios do Brasil há superlotação de presos, celas insalubres e pessoas com deficiência mental convivendo com os demais presos – além de doentes sem medicação, grávidas sem suporte, presos provisórios cumprindo penas ao lado de condenados e detentos em greve de fome contra as péssimas condições do local. Pergunte a esses cidadãos que habitam essas “jaulas” o que acham dessa nova preocupação do CNJ e da sociedade em relação as alas para os LGBTQ+, sem que eles próprios tenham condições mínimas de cidadania e humanidade (humanidade precede o gênero, ao que nos parece).

Antes de nos preocuparmos em fornecer “alas específicas” a determinados grupos, não seria de maior relevância nos preocuparmos se atualmente os detentos recebem papel higiênico para sua limpeza básica? E se os dados mais atualizados do CNJ apontam a existência de 810 mil presos para as 437 mil vagas existente, essa é a hora de diminuirmos ainda mais o espaço de todos, empilhando-os como lixo humano, enquanto criamos vagas específicas para grupos minoritários?

Interessante, inclusive, observarmos os grupos de esquerda que defendem o pensamento socialista e direitos de minorias sequer perceberem a contradição do discurso, pois reclamam do “acúmulo de direitos” que setores da sociedade detém perante os desvalidos, mas exigem esta mesma lógica quando na defesa de suas políticas identitárias.

Ora, no universo privado, acumula-se o quanto se quiser, e se destina verba para onde se bem entender. No público, entretanto, com cada centavo retirado do bolso de cada cidadão, cabe ao Estado garantir o bem estar de todos antes de propiciar o destaque para poucos, o que significa dizer que, quando finalmente garantir aos atuais presidiários, independentemente de sua opção sexual, o direito à vida, à integridade física, à saúde, a vedação à tortura e ao tratamento desumano ou cruel, poderá “avançar” nas conquistas e criar, com os recursos financeiros de todos, “alas” que serão utilizadas apenas por alguns – no caso, população LGBTQ+.

Um passo de cada vez, eis que, mal comparando, não se dá uma bicicleta para uma criança que não aprendeu a caminhar. Enfim, a conta não bate. Nem na matemática, nem no respeito ao conceito básico de cidadania ainda não implementado para todos.

*Sofia Coelho é advogada especialista em Direito Público do escritório Daniel Gerber Advocacia Penal

*Daniel Gerber é advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial. Sócio-fundador dos escritórios Daniel Gerber Advogados Associados (Brasília-DF e Porto Alegre-RS) e Gerber & Guimarães Advogados Associados (Palmas-TO)

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