Está na pauta do STF (Supremo Tribunal Federal) desta semana o julgamento do “direito ao esquecimento”, que é a possibilidade do cidadão pedir para ter seu nome removido de resultados de buscas na internet sobre fatos passados.
O julgamento em questão é de um recurso da família de Aída Curi, assassinada em 1958 no Rio de Janeiro, contra a TV Globo. Parentes da vítima relatam que o crime foi alvo de cobertura intensa da imprensa à época e protestam que a história tenha voltado aos holofotes no programa “Linha Direta Justiça”, exibido em 2004.
Especialistas no assunto fazem ponderações sobre o tema. Se a liberdade de expressão é um direito absoluto, a Constituição também protege a vida privada do indivíduo, destacam.
Paula Sion, advogada criminalista e coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Lei Geral de Proteção de Dados no âmbito da Comissão de Direito Penal da OAB/SP, sócia do Cavalcanti Sion Salles Advogados, avalia que cada caso deve ser analisado individualmente, sem repercussão geral.
“Não vejo como o direito ao esquecimento possa ser tratado como um tema de repercussão geral, pois deve ser analisado de maneira casuística, a fim de decidir, naquele caso concreto, entre a não estigmatização de um indivíduo em razão de determinado acontecimento e a liberdade de imprensa e informação, valendo ressaltar que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – recentemente em vigor – exclui a sua própria incidência quando se tratar de dados utilizados com fins exclusivamente jornalísticos”, diz.
Vera Chemim, advogada constitucionalista, mestre em Direito Público Administrativo pela FGV, diz que é preciso ponderar o direito à liberdade de expressão e o direito à vida privada.
“O caso em questão demanda a ponderação entre princípios constitucionais igualmente relevantes, como o direito à liberdade de expressão e o direito à vida privada, à intimidade e o interesse público envolvido, todos previstos na Constituição Federal de 1988. Trata-se, pois, dos direitos fundamentais que, a depender de cada situação em concreto precisam ser devidamente analisados para que se possa decidir qual deles se enquadra no presente caso”, afirma.
Ainda segundo Chemim, desde que haja interesse público na divulgação do fato, o direito ao esquecimento fica relegado a uma condição secundária. Por outro lado, caso a divulgação venha a ocorrer muitos anos depois que o fato ocorreu e a vítima seja novamente exposta, ela poderá requerer judicialmente o direito ao esquecimento.
“Se a informação divulgada for de natureza privada, pessoal, há de prevalecer o direito ao esquecimento e com isso, a vítima deverá ser indenizada conforme prevê o Direito Civil. O STF terá a árdua missão de julgar a presente causa, até porque não é um caso que remeta à Internet e sim a uma rede de televisão e a decisão a ser tomada constituirá um precedente jurisprudencial importante para a definição de casos futuros”, conclui.
Para Daniel Gerber, advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, o tema é controverso. “Direito ao esquecimento nada mais é do que, em nome do bem estar individual, limitar o acesso público a fatos efetivamente ocorridos. O confronto entre os valores acima demonstra o quão delicado é o assunto, principalmente em uma época de revisionismo histórico onde, através das políticas identitárias e defesa de valores específicos, grupos sociais confrontam o passado. Se, de um lado, a memória eterna de um fato pode prejudicar terceiros, o esquecimento o fará em grau ainda maior, pois não é difícil lembrarmos que aprendemos com nossos erros. Retirar da sociedade a chance de analisar o passado e, com ele, aprender, é, ao fim, medida mais violenta do que o eterno lembrar”, opina Gerber.
Punição eterna
Almino Afonso Fernandes, advogado constitucionalista e sócio do escritório Almino Afonso & Lisboa Advogados Associados, entende que os registros existentes nas mídias e nas redes sociais de cunho negativos atuam como “verdadeiras penas” ao indivíduo.
“A Constituição da República consagra o direito de que ninguém terá pena perpétua (art. 5o., XLVII, alínea “b”). Compreendendo que o Estado não pode punir o cidadão de forma indefinida e eterna, abrindo azo ao perdão pelo esquecimento, já que é necessário que se assegure à pessoa uma nova oportunidade e um novo começo, sem que o passado possa deixar registros indesejáveis que comprometam uma nova vida. Os registros existentes nas mídias e nas redes sociais de cunho negativos atuam como verdadeiras penas ao indivíduo, não permitindo que máculas históricas possam ser esquecidas ou, em última análise, perdoadas no imaginário coletivo, nem tampouco na memória de quem as praticou. Por isso, é de extrema importância que o Supremo Tribunal Federal volte os olhos para este tema, estabelecendo balizas para adoção do instituto do esquecimento”, diz.
Cecilia Mello, sócia do Cecilia Mello Advogados, criminalista, que atuou por 14 anos como juíza federal no TRF-3, alerta que a interferência do julgamento em outros casos dependerá da similaridade das situações. Ela também faz considerações sob o ponto de vista da vítima.
“Sem dúvida, reviver fatos passados, envoltos em crimes e violências, pode causar grande dose de sofrimento para familiares e amigos das vítimas. Entretanto, a sociedade não pode ser privada de efetivamente conhecer esses fatos, que muitas vezes passam a fazer parte da história, servindo de base para o aperfeiçoamento dos direitos sociais, dos direitos da mulher, muito especialmente”, diz.
Já em relação a eventuais autores do delito, Mello entende que menos ainda se justifica o direito ao esquecimento. “Mesmo na hipótese de cumprimento da pena recebida, cabe a eles demonstrar à sociedade que se reeducaram, e à sociedade compreender definitivamente que as penas e a culpa não são eternas. Há um viés, porém, que o direito ao esquecimento tem o seu lugar: no erro. Acusações totalmente infundadas que desembocam na negativa do acontecimento ou da participação daquele indivíduo, merecem ser esquecidas ou, no mínimo, apontadas como um erro”, finaliza.
Para o criminalista André Damiani, fundador do Damiani Sociedade de Advogados e especialista em LGPD*, “na sociedade da informação onde tudo está a apenas um ‘click’ de distância, o reconhecimento do direito ao esquecimento é imprescindível para garantir direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, como a privacidade, intimidade, honra e o uso de imagem, que por sua vez são premissas da liberdade e dignidade da pessoa humana”.
“Na medida em que informações referentes à vida privada de indivíduos tornam-se objeto de comercialização e lucratividade, a divulgação, por meio de veículos de comunicação, de fatos, fotos e vídeos pode se transformar em abuso midiático, causando dor e sofrimento. Ainda que os casos tenham alcançado relevante projeção midiática, na medida que não façam parte do patrimônio histórico ou cultural da sociedade, são passíveis de reivindicação do direito ao esquecimento”, afirma Damiani.
Por sua vez, a advogada Blanca Albuquerque, sócia de Damiani e especializada em proteção de dados pessoais pelo Data Privacy Brasil*, enfatiza que o direito ao esquecimento não significa o apagamento da história. “Diferentemente, representa compaixão, a exemplo do caso Aída Curi, que após mais de 50 anos da ocorrência foi revivido em rede nacional, ocasião em que se utilizaram imagens reais da vítima e de seus familiares, recordando assim verdadeira tragédia”, afirma. E pergunta: “É racional que a privacidade de um indivíduo esteja à disposição da imprensa para fazer uso quando quiser e bem entender, sem ponderar as consequências?”.
Para Blanca, é evidente que informações atinentes à privacidade dos indivíduos não devem ser expostas inesgotavelmente ao domínio público. “Primeiramente, os dados que dizem respeito a determinado indivíduo são privados, cabendo a este torná-los públicos ou não. Além disso, tais informações necessitam de um ciclo de vida bem delimitado, já que não há qualquer coerência em rememorá-los e mantê-los ad eternum, devendo prevalecer o direito à privacidade dos indivíduos”, conclui.
Exploração comercial
Alexandre Fidalgo, sócio-fundador do Fidalgo Advogados, especialista em Liberdade de Imprensa e doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo*, também aborda o conflito entre o direito à informação e o direito à privacidade.
“O conflito entre o direito individual, de privacidade e intimidade, e o direito coletivo de informar vem ganhando novos capítulos e discussões no meio jurídico. O ponto mais sensível do caso Aída Curi não é o direito a se esquecer ou não do caso, mas sim a sua exploração comercial. A emissora em questão capitalizou recursos financeiros com a história de alguém e isso é um aspecto a ser abordado. A pergunta que devemos fazer é: o que fazer com tais menções – e, principalmente, como garantir paz a quem quer paz, sem ferir os direitos de informar e ser informado da sociedade?”, indaga.
Fidalgo também defende uma legislação específica sobre o tema. “Não temos essa figura do direito ao esquecimento como está sendo pedida no processo no Brasil, apesar de necessária a discussão e a adaptação de modelos como o europeu à realidade brasileira. Sem lei sobre o assunto no país, haveria mais segurança se isso fosse tratado pelo Legislativo”, diz.
Armando S. Mesquita Neto, criminalista, sócio do Leite, Tosto e Barros Advogados, vê no julgamento desta quarta a chance do STF evitar a “eternização da sentença penal”.
“O STF decidirá uma questão muito importante que irá impactar toda a sociedade, especialmente aqueles que se envolveram em práticas ilícitas de natureza penal. Será julgado o direito ao esquecimento. Esperamos que os 11 ministros entendam pelo direito de pessoas que cumpriram integralmente as suas penas, não sejam eternamente rotulados como criminosos, a fim de evitar a eternização da sentença penal. No julgamento deverão prevalecer os princípios da dignidade da pessoa humana, à privacidade e à intimidade, consagrados em nossa Constituição Federal como direitos fundamentais e indisponíveis”, opina.
Na mesma linha, Daniel Bialski, advogado criminalista, mestre em Processo Penal pela PUC-SP, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e sócio de Bialski Advogados, ressalta que “é válido e muito importante que a Suprema Corte decida e reflita com profundidade esse tema”.
“Nunca devemos esquecer dos discursos de ódio, das acusações falsas, dos excessos, das fake news e da necessidade disso ser atingido pelo direito ao esquecimento, para que não se torne uma mácula perene na vida anteacta da pessoa. Esses registros, especialmente, os comprovadamente injustos, não podem ser eternos. Na própria lei de execução penal consta que o crime tem de ser excluído da certidão. Até para que ela consiga se reabilitar. E isso deve valer também para a exclusão dos conteúdos na internet, as pessoas não podem ser vítimas de inscrições indevidas e fake news”, comenta Bialski.
José Nantala Bádue Freire, especialista em Direito Constitucional do Peixoto & Cury Advogados, destaca a relação entre direito ao esquecimento e intimidade.
“O direito ao esquecimento é sempre muito atrelado à intimidade, à privacidade e à publicidade, que são todos preceitos constitucionalmente consagrados. A discussão do direito ao esquecimento no Brasil, normalmente, é atrelada também aos prazos prescricionais das condutas. O debate é se uma pessoa, que cometeu determinado crime, tem o direito de que isso um dia seja esquecido. É possível dizer que, ocorrida a prescrição da pretensão punitiva, deve-se esquecer que a pessoa cometeu aquele delito? Do ponto de vista legal, a resposta é sim. Do ponto de vista do Direito Civil, se há uma dívida não paga e prescrita, ela pode ser apagada dos registros? Sim. Há o direito dela ser esquecida. Agora o direito ao esquecimento também é atrelado a conduta da pessoa. Se alguém tem uma conduta que demonstra que aquele ato é um formato isolado na vida dela, sem replicações, existe uma postura. É direito ter o ato isolado esquecido – ou seja, desconsiderado pelas autoridades na análise da reputação e vida pregressa”, afirma Freire.
Claudio Bidino, criminalista e sócio do escritório Bidino & Tórtima Advogados, classifica como de suma importância o julgamento “não apenas para as vítimas de crimes graves e os seus entes queridos, que sofrem com cada notícia nova que reacende toda dor pelas quais elas passaram, mas também para os próprios condenados desses mesmos delitos e os seus familiares, que acabam ficando eternamente estigmatizados e impedidos, na prática, de se reinserirem na sociedade. É preciso encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e outros valores constitucionais não menos relevantes, como o direito à intimidade e o próprio princípio da dignidade da pessoa humana”.
Foto: Fellipe Sampaio / SCO / STF