Opinião

Exigir investigado no interrogatório se ele manifestou desejo ao silêncio é ilógico

É curioso que um inquérito precise da disposição do investigado em falar para alcançar êxito

8 de fevereiro de 2022

Por Daniel Gerber*

Artigo publicado originalmente na ConJur

Uma aberração jurídica surgida e — felizmente — terminada no espectro da operação “lava jato” foi a condução coercitiva de investigados que jamais haviam sido intimados anteriormente para fins de depoimento.

Pelo contrário, no auge da operação os mandados de condução coercitiva eram expedidos em conjunto com os próprios mandados de intimação para depor.

Significa dizer que um instituto criado para conduzir recalcitrantes em determinadas e específicas situações passou a ser utilizado como regra geral, em verdadeiro exercício de uma estratégia judicial que visava a impedir o investigado de se reunir com sua defesa, obter acesso às acusações e, assim, preparar-se para o ato.

Além da deformidade institucional que a prática acima revelou, a própria concepção de conduzir coercitivamente um cidadão que detém direito ao silêncio para que o exerça “olho no olho” com a autoridade pública nada mais é do que um triste espetáculo de força que satisfazia parcela da mídia e os radicais de plantão, mas que nada acresce ao cenário jurídico daquilo que se busca apurar.

Assim, sendo uma das funções do procedimento penal institucionalizado reduzir a irracionalidade do poder punitivo, nada há na lógica que justifique a presença física de alguém que já manifestou seu desejo de permanecer calado.

Além disso, considerando que tais conduções — e até mesmo a simples obrigação de comparecer pessoalmente ao ato de interrogatório — trabalham sua narrativa de legitimidade sob o argumento de que o depoimento do investigado é imprescindível às investigações, surge um evidente paradoxo forçadamente ignorado pelas autoridades, qual seja o fato de que a investigação não amealhou provas suficientes para instaurar uma ação penal e, ainda, que diante do silêncio do acusado o que restará é o arquivamento do feito.

Tal conclusão surge de uma simples análise gramatical do argumento utilizado. Se o depoimento do investigado é “imprescindível”, entende-se que sem ele nenhuma conclusão sobre o objeto investigado será possível; se não é possível, resta o arquivamento; se possível for, então o depoimento não era imprescindível e a condução era ilegítima.

Enfim, um círculo de lógica argumentativa cuja exposição e entendimento não interessam ao show.

Isso para não falarmos que a imprescindibilidade da palavra do investigado para a reconstrução dos fatos analisados é anacrônica ao panorama atual de capacidade investigativa. Em tempos em que o passado é sempre presente devido aos conteúdos de redes sociais, nuvem, interceptações telefônicas e telemática etc., é no mínimo curioso que um inquérito precise do investigado e de sua disposição em falar para alcançar êxito em sua apuração. O que se espera? Confissões? Se o investigado não confessar e ficar em silêncio as investigações naufragarão sob o peso da ausência de prova “imprescindível”?

Enfim, grandes problemas trazem grandes soluções. O Supremo Tribunal Federal deu um largo passo civilizacional ao enfrentar o tema na ADPF 395/DF, esclarecendo que a parte final do artigo 260 do Código de Processo Penal, quando utiliza a expressão “para o interrogatório”, não foi recepcionada pela Constituição Federal.

No entanto, como o tema volta a debate ante a ordenação de comparecimento do presidente Bolsonaro a um interrogatório na Polícia Federal, a hora é de se aproveitar o momento e se extirpar, de uma vez por todas, a figura da obrigatoriedade de comparecimento pessoal ao ato de interrogatório, seja policial seja judicial, sempre que o investigado manifestar seu desejo ao silêncio.

Nessa linha, e como dito acima, o constrangimento de comparecer a tal ato deve ser uma escolha daquele que se vê investigado ou processado, eis que, pelo viés jurídico, nada há de racional em se forçar um comparecimento pessoal de quem já declarou nada ter a declarar.
Aguardemos o próximo passo rumo ao fim do capítulo.

Daniel Gerber é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico, mestre em Ciências Criminais e sócio-fundador de Daniel Gerber Advogados Associados.

 

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