Por Sérgio Ribeiro Santos, Silas Luiz de Souza e Wesley Espinosa Santana*
Para uma nação, a Carta Magna é a garantia da lei, da ordem e do cumprimento dos desejos da sociedade em sua busca por liberdade, progresso e o bem comum. Há duzentos anos, o Brasil teve a sua primeira Assembleia Constituinte. Sim, a primeira, porque já tivemos diversas outras depois dessa, resultado da luta permanente para conseguir identificar os anseios da sociedade na busca por uma pátria comum e que abrace a todos. A Constituição organiza o Estado e a relação entre suas diversas partes. Vamos procurar compreender, muito brevemente, o que foi essa primeira constituinte, que já é bicentenária.
Ao se tornar politicamente independente, o Brasil precisava organizar o novo Estado não com base nas leis portuguesas e nos interesses de Portugal, mas estabelecer novas regras e padrões tendo em conta os anseios brasileiros. Claro que os portugueses e sua cultura estavam bem estabelecidos por aqui, não tendo sido tarefa fácil diferenciá-los dos brasileiros e seus interesses naquele início de país independente. Como diz o historiador brasileiro Boris Fausto (2003, p. 147), “não havia um acordo sobre as linhas básicas que deveria ter a organização do Estado”.
A Assembleia Constituinte começou os seus trabalhos em maio de 1823. Com a ausência de alguns radicais, como o baiano Cipriano Barata, alguns liberais ativos, presos ou exilados, foi praticamente impossível chegar a um acordo. Costuma-se falar dos grupos liberais moderados, dos liberais exaltados e de um partido português. Um grupo desejava uma monarquia na qual o monarca se submetesse ao Parlamento; já o outro pensava em uma monarquia forte e centralizada para unir e consolidar a nação, embora constitucional, o monarca estaria atrelado aos mandos da Constituição.
Outro assunto importante era a definição sobre a própria identidade do brasileiro. Indígenas e escravos seriam também brasileiros? Teriam direitos políticos? Alguns desejavam a abolição gradual da escravidão como forma de levar o Brasil ao mesmo contexto das nações progressistas. Claro que o poder na constituinte estava com os proprietários de terras e, por isso, o esboço já indicava que só poderiam ser eleitores quem tivesse renda anual equivalente a uma determinada quantidade de mandioca produzida. Daí o apelido de “Constituição da Mandioca”, que mostrava a força do latifúndio pátrio. Indígenas e escravos foram absolutamente ignorados.
Inspirados em Montesquieu, queriam organizar o Estado com os três poderes interdependentes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Essa estrutura atuaria de forma que o Executivo ficaria claramente sujeito ao Legislativo. O problema é que o monarca desejava um regime absolutista. Esse dilema e outras questões não bem equacionadas pelos constituintes fizeram com que Dom Pedro dissolvesse a constituinte em novembro de 1823, tendo forte reação de parte de alguns parlamentares que ousaram confrontar o monarca e se recusaram a abandonar os trabalhos, atitude que não demorou mais do que uma noite, a chamada “Noite da Agonia”.
O país, porém, não podia ficar sem uma Constituição e Dom Pedro tratou de juntar uma dezena de homens fiéis ao monarca, os quais, em duas semanas, escreveram uma Constituição usando o projeto da “Constituição da Mandioca”, elaborado pela Constituinte dissolvida. No entanto, houve uma grande novidade que foi o estabelecimento de um quarto poder aos três previstos anteriormente, o poder Moderador, a ser exercido de modo pleno pelo Imperador. Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015, p. 235) explicam que “de uso privativo do Imperador, o Poder Moderador estava acima dos demais”, além disso, “tinha a função, segundo o texto, de garantir a harmonia e equilíbrio ao Estado. Era, na definição da época, um poder neutro”. O fato dessa constituição ter sido imposta por D. Pedro I lhe rendeu o nome de “Constituição Outorgada”, como se tivesse sido concedida como um favor ao povo e pela bondade do monarca. Tal Constituição entrou em vigor em março de 1824.
Lembrar os caminhos da primeira Constituinte brasileira nos ajuda a compreender um pouco melhor as dificuldades que a nossa sociedade tem para decidir sobre os seus próprios rumos.
Referências Bibliográficas
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 11 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Sérgio Ribeiro Santos é coordenador dos cursos de História e Teologia do Centro Educação, Filosofia e Teologia (CEFT) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM);
Silas Luiz de Souza é professor do Centro Educação, Filosofia e Teologia (CEFT) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM);
Wesley Espinosa Santana é professor do Centro Educação, Filosofia e Teologia (CEFT) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
Foto: Domínio Público