Por Gláucia Massoni e Alberto de Carvalho*
Artigo publicado originalmente no Estadão
A pandemia mostrou desigualdades sociais com forte impacto na vida cotidiana de todos. Na atividade forense não foi diferente. É preciso analisar o quanto as desigualdades podem atingir os processos no Poder Judiciário. Mas fato é que as audiências virtuais devem ser realizadas. A dúvida é como e se para todo o tipo de audiência.
Deve-se considerar ainda as dificuldades estruturais, geralmente em comarcas mais distantes, desprovidas de recursos, longe das grandes capitais. Há dificuldade até mesmo de se obter conexão com a internet com razoável estabilidade. Esta realidade contrasta com a dos grandes escritórios de advocacia, que de forma geral possuem acesso à internet estável e com grande capacidade de transferência de dados.
O mesmo se dá com as partes litigantes: enquanto muitos têm pacotes de dados estáveis e seguros, outros utilizam aparelhos com linhas pré-pagas, e sem pacotes de dados. Teriam essas pessoas computador em suas residências? Houve tempo hábil para implementação e conhecimento das ferramentas?
No aspecto social, sem sombra de dúvidas, tanto empregados como os pequenos empregadores, desprovidos de recursos e conhecimentos tecnológicos, serão abalados gravemente. No aspecto processual, é possível a realização de audiência virtual? Não há dúvidas. Tanto é assim que, mesmo no curso do afastamento social e da suspensão dos prazos, foram várias as audiências de conciliação que ocorreram. O mesmo pode acontecer com as audiências inaugurais. É possível até, temporariamente, utilizar-se do rito do CPC (art. 335), com audiência apenas para tentativa de conciliação e juntada de defesa se esta não lograsse êxito, por exemplo. Ou, mesmo, sua apresentação no dia aprazado para a audiência, mas sem coleta de depoimentos e testemunhos.
Contudo, no que tange às audiências que necessitem de coleta de depoimentos, essa possibilidade deve ser analisada com cautela, já que a produção de provas é vital para o julgamento dos processos, de forma muito especial na Justiça do Trabalho. Naturalmente há muito o que ser registrado em ata, não só no que é dito pelo depoente ou testemunha, senão no tom de voz, olhar, trejeitos, linguagem corporal como um todo, e a veracidade do que se está ali a dizer permeia estes aspectos, e estes pontos são flagrados pelo juiz que preside a sessão (princípio da identidade física do juiz).
Conforme prescrito no art. 385, § 2º, do CPC, é usual que os juízes peçam a uma das partes que se ausentem da sala enquanto acontece o depoimento da outra parte. Como será nas audiências virtuais? E mais grave: Quem garante que o depoimento de uma testemunha não poderá ser ouvido por outra? A incomunicabilidade das testemunhas é primordial. Tanto é verdade que as testemunhas são ouvidas separadamente, permanecendo incomunicáveis (art. 456 do CPC e art. 824 da CLT).
E não é só! Às partes é defeso usarem “escritos anteriormente preparados” (art. 387 do CPC). Imagine-se, a propósito, a testemunha, que, diversamente das partes, presta compromisso de dizer a verdade (art. 458 do CPC)? Em uma oitiva por videoconferência, o que impediria que a parte ou a testemunha, mesmo filmada, estivesse lendo, na tela onde fala, anotações, ou mesmo peças do processo, e reproduzindo seu conteúdo, ainda que resumido? Ou ainda, que não haja anotações ou mesmo pessoas fora do campo de visão da câmera?
As testemunhas, ao deporem, estão sob o compromisso que as obriga a dizer a verdade, entretanto, mesmo diante de tal obrigação, não é raro nos depararmos com falsos testemunhos na presença física de juízes. Como ficará nas audiências virtuais?
Em caso de acareação de testemunhas, prevista no artigo 418, II do CPC, onde as testemunhas têm a possibilidade de se retratar no caso de divergência de pontos nos depoimentos, como será o procedimento em audiências virtuais?
Outro aspecto a ser observado é a possibilidade de que servidor ou magistrado poderá silenciar (função mute) o microfone dos advogados, o que implicaria flagrante violação aos art. 6º e 7º, X, do Estatuto da OAB.
Como se observa, várias nulidades poderão ser arguidas em coleta de provas em audiências virtuais. É elementar que a subversão do procedimento, por mais bem-intencionada que seja a decisão dos Tribunais, implicará em violação a diversos dos mais caros dispositivos que regem a produção da prova oral, e conseguintemente, conduzirá a subversão tal que fulminará o devido processo legal, contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição Federal).
A utilização de meios virtuais para produção de provas é extremamente temerária. Embora os Tribunais busquem a celeridade processual, não se descarta a possibilidade de arguição de eventual nulidade, retardando ainda mais o feito.
Não se trata de contrariedade, posição definitiva, senão de uma impossibilidade que aguarda o avanço e aprimoramento das ferramentas hoje disponíveis, mantendo-se como premissa a necessidade de conclusão do feito com real aplicação da Justiça e sem ferir os princípios do direito. Não podemos fechar os olhos para o avanço da tecnologia. A produção de prova de forma específica pode ser pontualmente autorizada, ainda mais com a concordância das partes, mas a obrigatoriedade e tendência à “normalização” da medida ainda é prematura e extremamente temerária. Ao menos por enquanto.
Não basta prestação jurisdicional, mas é imperioso que ela seja justa. Até que se tenha uma segurança maior do que a que se possui hoje, não é desejável diante do risco de se violar normas federais e, mesmo, a Constituição da República, que a prova oral seja produzida antes que seja assegurada sua idoneidade.
*Glaucia Massoni e Alberto de Carvalho, especialistas em Direito do Trabalho, são sócios do Fragata e Antunes Advogados
Foto: STF/Divulgação