Por Raquel Xavier Vieira Braga*
Artigo publicado originalmente na ConJur
A queima de livros é o ritual de jogar na fogueira os registros escritos censurados pela ideologia dominante e normalmente acontece nos espaços públicos. Tristes acontecimentos da história foram marcados por este tipo de ato, como a queima de livros durante o cristianismo dos anos 300, a destruição dos manuscritos judaicos na disputa de Paris, no ano de 1244, a incineração dos livros de Jorge Amado no Brasil, em 1937, a aniquilação dos escritos durante a inquisição espanhola, em 1499, o incêndio da biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em 1800, o atear fogo da Alemanha Nazista, em 1933, e, em episódios mais recentes, os livros queimados durante a guerra da Bósnia, de 1992 a 1995, e na Austrália, em 2009, livros foram jogados em uma pira.
Os livros são tesouros que contam histórias e estórias, ensinam comportamentos, educam as pessoas, revelam segredos, confidenciam sentimentos, relatam acontecimentos, compartilham descobrimentos e avanços científicos, questionam pensamentos e dogmas, rompem barreiras no mundo das ideias, quebram paradigmas.
A escrita, artística ou científica, faz parte da cultura das civilizações. Quanto maior o contato do indivíduo com a leitura, maior a sua capacidade de se desenvolver com dignidade e, por ser mais completo, poder contribuir com a sociedade à qual pertence, razão pela qual a Constituição Federal de 1988 contemplou o livro com a imunidade tributária referente aos impostos.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n.º 330.817/RJ, entendeu que a imunidade do livro, garantida pelo artigo 150, IV, “d”, da Constituição Federal de 1988, contempla a forma eletrônica. O relator, ministro Dias Toffoli, ao incursionar na história dos precedentes da Suprema Corte sobre o tema, reconheceu que “o olhar da corte sempre foi no sentido de preservar valores, princípios e ideias de elevada importância, voltados para a formação cultural do povo brasileiro”.
Ainda sobre o direito fundamental à literatura, outros julgados do Supremo Tribunal Federal demonstram a formação do precedente jurisprudencial em torno da preservação dos livros em suas diferentes formas, como o reconhecimento da imunidade tributária referente aos álbuns de figurinha no julgamento do RE n.º 221.239/SP.
No plano infraconstitucional, o artigo 28, IV, da Lei nº 10.865/2004 reduziu a alíquota a zero, esvaziando a cobrança das contribuições para PIS e Cofins sobre os livros.
Atualmente, um dos temas mais discutidos tem sido a reforma tributária, que poderá ter impacto significativo nos livros. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de sua Comissão de Cultura e Arte, manifestou indignação com a proposta de reforma tributária do governo federal de onerar em 12% os livros no país com a cobrança da Contribuição Social Sobre Operações de Bens e Serviços (CBS). A nota da Ordem diz: “Com esse aumento no tributo, restará inviabilizado o trabalho de muitas editoras, autores, artistas gráficos, ilustradores, livrarias e toda a cadeia produtiva. Além disso, irá diminuir, ainda mais, o acesso à cultura e à educação em um país com tantas desigualdades. Aumentar o preço dos livros é trancar as portas da oportunidade, em que o povo brasileiro pode alcançar uma vida digna por meio do estudo e da educação de qualidade. É o caminho do subdesenvolvimento. Nas palavras de Monteiro Lobato, ‘um país se faz com homens e livros’”.
É preciso lembrar que a tributação faz parte da história humana e existe por um propósito que, com a evolução do pensamento coletivo, tornou-se cada vez mais claro: abastecer os cofres públicos para que o Estado possa atender as necessidades da população.
No entanto, há questões em que a finalidade social é tão atendida pela iniciativa privada que não teria o mínimo sentido ocorrer tributação, como é o caso do livro. É de interesse de todos, poder público e sociedade, que o livro chegue às mãos das cidadãs e dos cidadãos brasileiros.
Com efeito, muitas das finalidades do Direito Tributário estão além da arrecadação. O livro insere-se nesse contexto, pois é um poderoso instrumento que proporciona instrução e educação aos indivíduos. Sua acessibilidade está totalmente alinhada com o interesse público e colabora com os próprios deveres do Estado. O livro — físico, eletrônico ou em outros formatos que a tecnologia venha a criar — é a porta de entrada para as pessoas desenvolverem suas ideias.
O defensor do direito à literatura, Antonio Candido, lembrando o ponto de vista do sociólogo francês, padre Louis-Joseph Lebret, destaca a distinção entre bens compressíveis e bens incompressíveis. Os bens compressíveis seriam aqueles de possível abdicação pelo gênero humano, ao passo que os incompressíveis são essenciais para todas as pessoas, como é o caso do alimento, da roupa, da saúde e da educação. No entanto, como elucida o crítico literário brasileiro, “são bens incompressíveis não apenas os que assegurem sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual”.
O livro é um bem que alimenta a alma e o espírito do leitor. Seu acesso não pode ser negado a ninguém. Ora, tributar esse precioso tesouro vai na contramão de tudo o que se construiu em termos de valores sociais e jurídicos. É preciso salvar os livros para que, caso o projeto de reforma tributária venha efetivamente a vingar, não se chegue nem perto de qualquer tipo de acontecimento que lembre a queima de livros.
Raquel Xavier Vieira Braga é advogada em Brasília do escritório Marcelo Leal Advogados Associados, doutoranda em Direito no UniCEUB, mestra em Direito pela UFRGS, especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas em Porto Alegre e em Direito Empresarial pela UFRGS.