Por Daniel Gerber* e Marcelo Marcante
Artigo publicado originalmente na ConJur
Como diz o ditado popular, “nem tudo que reluz é ouro!”. Na segunda-feira (22/6), o Conselho Nacional de Justiça realizou a 27ª Sessão do Plenário Virtual, em que foi colocado em pauta o Ato Normativo 0004587-94.2020.2.00.0000, que visa a autorizar os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais a realizar sessões de julgamento no âmbito do tribunal do júri com auxílio de videoconferência, em razão da pandemia da Covid-19, utilizando-se da plataforma Cisco Webex ou de outra ser definida pelo respectivo tribunal (artigos 1º e 2º).
O tema é polêmico e está gerando enormes discussões. A possibilidade do uso da ferramenta eletrônica estremeceu a advocacia, com inúmeras manifestações sobre a (in)constitucionalidade do júri virtual e, consequentemente, do ato normativo do Conselho Nacional de Justiça.
O que se percebe é que, em nome da Constituição e da garantia do prazo razoável do processo, a proposta do Conselho Nacional de Justiça extrapola as suas funções constitucionais de controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (artigo 103-B, §4º da CF/88) ao, literalmente, legislar em matéria processual penal. Não é sua atribuição definir a ritualística para os julgamentos no âmbito do tribunal do júri, pois se trata de matéria de competência privativa de lei federal (artigo 22, inciso I, da Constituição Federal). Logo, sob a perspectiva da constitucionalidade formal, o ato normativo está eivado de vício.
Além disso, o rito estabelecido também é materialmente inconstitucional, uma vez que não assegura a incomunicabilidade dos jurados e a plenitude de defesa.
O §2º do artigo 2º preceitua que as sessões poderão se realizar com a participação remota do representante do Ministério Público, da defesa técnica, do réu, da vítima e das testemunhas. Contudo, o ato normativo não autoriza o juiz a impor a obrigação da defesa proceder os debates pelo sistema de videoconferência.
A sessão de julgamento do tribunal do júri poderá ser iniciada virtualmente com o acompanhamento virtual do juiz, do representante do Ministério Público, da defesa técnica e do réu, momento em que será realizado o sorteio dos sete jurados que comporão o conselho de sentença (artigo 4º, caput).
Após o sorteio dos jurados pelo sistema de videoconferência, haverá o dever de suspender o ato processual para que o magistrado, os jurados sorteados, o secretário de audiência e os oficiais de Justiça, no mesmo dia, façam-se presentes à sala de sessões plenárias do tribunal do júri (artigo 4º, §1º). Logo, a sessão será realizada no salão do júri do respectivo foro, sendo que não será permitido o ingresso presencial ao plenário do tribunal do júri de pessoas não essenciais ao ato, para evitar aglomerações, na forma do artigo 5º, §1º.
Quanto ao representante do Ministério Público, à defesa e ao acusado, se estiver solto, deverão, antes de ser determinada a suspensão da sessão, informar ao juiz-presidente da sessão plenária se desejam comparecer ao ato pessoalmente ou se utilizarão o sistema de videoconferência. Como dito, não poderá o juiz-presidente impor a realização dos debates pelo sistema de videoconferência. O acusado preso terá direito a acompanhar o seu julgamento, através do sistema de videoconferência, em sala própria na casa prisional onde se encontrar, devendo ser assegurado à defesa o acesso ao réu preso por telefone ou outro meio de comunicação durante todo o julgamento, podendo comunicar-se com ele sempre que entender necessário.
No âmbito do tribunal do júri, o artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição define os princípios do júri e o erige à cláusula pétrea, assegurando: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; e d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
A primeira questão que se coloca aqui é: como será assegurada a incomunicabilidade dos jurados? Como corolário do princípio do sigilo das votações, o §1º do artigo 466 do Código de Processo Penal estabelece que, uma vez sorteados, os jurados não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do conselho e multa. O jurado julga pela íntima convicção e, por essa razão, a incomunicabilidade deve ser preservada.
Ocorre que, após ser escolhido pelo sistema de videoconferência, o jurado em tese deveria estar incomunicável, regra que se torna de impossível controle ao juiz-presidente, ao Ministério Público e à defesa. Até a sua chegada ao salão plenário, o jurado terá acesso a todos os meios de comunicação disponíveis em seu aparelho de telefone celular, podendo se comunicar com terceiros e pesquisar sobre o caso que será posto em julgamento.
Outro ponto problemático é a eventual opção defensiva de se manifestar pelo sistema de videoconferência. A defesa técnica é indisponível, sendo que não poderá ser exercida de forma plena como assegura a Constituição Federal se o defensor do acusado coadunar com a realização de manifestação e tréplica pelo sistema de videoconferência. Ao acusado também deve ser garantido o direito de informar que deseja seu defensor presente fisicamente na sessão plenária, ou se aceita que sua defesa seja exercida pelo sistema de videoconferência.
A tecnologia veio para ficar no processo penal e deve ser utilizada como ferramenta para implementação de uma Justiça efetiva, célere, mas que, sobretudo, garanta aos acusados todos os direitos e a garantias inerentes ao processo penal no Estado democrático de Direito. O acusado é um sujeito de direitos, e não um objeto do processo. A inversão dessa lógica gera situações problemáticas e anacrônicas e não podemos admitir.
Nem tudo que reluz é ouro e, embora as ferramentas tecnológicas venham a facilitar a nossa vida, principalmente em tempos de pandemia, é preciso ter muito cuidado com sua implementação, a qual deve assegurar, prima ratio, o devido processo legal e os direitos e garantias constitucionais inerentes ao processo penal democrático, eis que se está tratando dos bens jurídicos mais relevantes dos indivíduos que não podem ser relegados, mesmo em tempos estranhos de pandemia.
Daniel Gerber é advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, sócio-fundador dos escritórios Daniel Gerber Advogados Associados (Brasília e Porto Alegre) e Gerber & Guimarães Advogados Associados (Palmas).
Marcelo Marcante é advogado criminalista, professor de Direito Penal e Processual Penal, doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS e sócio-fundador do escritório Marcelo Marcante Advogados.