Opinião

Sugar tax e Direito Tributário: o dito e o não dito

Promoção da saúde pública deve ser submetida ao crivo da racionalidade

23 de outubro de 2020

Por Sacha Calmon*

Artigo publicado originalmente no Jota

Tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei com objetivos comuns, a saber: a elevação da carga tributária de refrigerantes e bebidas açucaradas, para que o encarecimento daí decorrente leve à redução de seu consumo. Tal redução, por sua vez, serviria à promoção da saúde pública, mediante a prevenção de doenças relacionadas à elevada ingestão de açúcar, principalmente a obesidade e o diabetes.

Na Câmara dos Deputados, tramita o Projeto de Lei 8.541/2017 (deputado Paulo Teixeira, PT/SP), o qual prevê a majoração da alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de 4% para 5%, sobre bebidas não alcoólicas que contenham açúcares adicionados. Atualmente, aguarda-se Parecer da Relatoria da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) para que a deliberação tenha prosseguimento.

A este projeto de lei, outros três foram anexados, todos, porém, com objetivo comum. Nesse sentido, é ver:

  1. o PL 8.675/2017 (deputado Sérgio Vidigal, PDT/ES), pelo qual se institui Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico sobre a comercialização de bebidas processadas adicionadas de açúcar, com alíquotas variáveis entre 0,5% e 3%;
  2. o PL 10.075/2018 (deputado Aureo – SD/RJ), o qual prevê a duplicação e mesmo a triplicação de alíquotas do IPI sobre bebidas não alcoólicas adoçadas com açúcar, a depender do nível de concentração; e
  3. o PL 250/2019 (deputado Assis Carvalho – PT/PI), que propõe a elevação da tributação aplicável às bebidas processas adicionadas de açúcar, “a fim de estimular seu consumo consciente”. Para tanto, majora de um a dois terços das alíquotas sobre PIS, PIS-Importação, Cofins e Cofins-Importação sobre produtos que tenham açúcar adicionado. Ademais, estabelece alíquotas mínimas de IPI no valor de 10% e 18% sobre tais bebidas, a depender do nível de concentração de açúcar.

Da justificação desse último PL extrai-se: “Pretendemos, dessa forma, usar do instrumento tributário para desestimular o consumo excessivo de refrigerantes e outras bebidas açucaradas, hoje facilmente acessível à população brasileira, com graves repercussões em nossa saúde[1].

No Senado Federal também há pretensão semelhante. O PL 2.183/2019 (senador Rogério Carvalho – PT/SE) prevê a criação de contribuição de intervenção no domínio econômico incidente sobre a comercialização e importação de refrigerantes e bebidas açucaradas (CIDE-Refrigerantes). Chama atenção, todavia, a elevada alíquota prevista, no percentual de 20%.

Quanto à proposta senatorial, a Comissão de Assuntos Sociais (CAS), na sessão do dia 05 de junho de 2019, antes de deliberar sobre o Parecer favorável à aprovação que havia sido redigido pelo senador Relator Romário (PODEMOS/RJ), acabou decidindo por requerer informações ao Ministro da Economia sobre a CIDE-Refrigerantes, o que foi feito por iniciativa do senador Otto Alencar (PSD/BA).

Com isso, previamente à deliberação do tema pela CAS, os Senadores, por meio do requerimento formulado, terão condições de saber, em síntese: (I) qual a avaliação do Poder Executivo sobre a criação da CIDE-Refrigerantes; (II) qual o nível da carga tributária atual para os setores envolvidos; (III) qual o impacto da alíquota de 20% proposta aos setores envolvidos.

Com natural respeito a entendimento diverso, digna de todos os aplausos a postura cautelosa adotada pela CAS do Senado Federal. Afinal, o tema em voga suscita maiores aprofundamentos e reflexões, apesar do que sugerem os argumentos aparentemente óbvios utilizados nas justificações de cada um desses projetos de lei.

Isso porque, ao contrário do que supõe a lógica por detrás das propostas, não há demonstração empírica razoável quanto à eficiência da medida sugerida (elevação da carga tributária de refrigerantes e bebidas açucaradas) à consecução dos fins declaradamente buscados (ou seja, a prevenção da obesidade e dos problemas de saúde a ela relacionados, pela redução no consumo de bebidas açucaradas). E a razão a tanto definitivamente não é o suposto ineditismo da estratégia em voga.

O chamado sugar tax já existe em países como Estados Unidos da América, México, Dinamarca, Chile, Hungria, França, como inclusive destacado pelas justificativas constantes dos referidos projetos de lei.

Logo, apesar de se tratar de prática já adotada em várias partes do mundo, não há razoáveis evidências de que a majoração da carga tributária sobre refrigerantes teria vindo em benefício da saúde geral dos cidadãos ou mesmo que teria auxiliado na prevenção de doenças como obesidade, diabetes etc. Por outro lado, multiplicam-se exemplos que sugerem justamente o oposto, ou seja, absoluta irrelevância ou, no máximo, insignificante correlação, entre tais fatores.

O exemplo dinamarquês e a abolição dos excises taxes em 2013

A Dinamarca não deve ser esquecida quando se discute o sugar tax. Sugestivamente, todavia, não foi citada por nenhum dos projetos de lei que buscam elevar a carga tributária sobre bebidas açucaradas.

Isso porque, além de naquele país o açúcar adicionado a refrigerantes e bebidas açucaradas ser sobretaxado desde os anos 30, em 2011 restou instituído imposto sobre alimentos gordurosos (fat tax) com o objetivo deliberado de desestimular o consumo. Entretanto, em 2013, o Governo dinamarquês acabou por abandonar tal política tributária, sobretudo em razão dos efeitos socioeconômicos dela decorrentes, alinhados à pouca efetividade em prol dos objetivos originariamente declarados.

Inclusive, a falta de efetividade dos tributos extrafiscais é dos principais fatores à sua deslegitimação social, fazendo com que cresça a rejeição ao tributo. Afinal, sem a promoção dos fins a que se destina, a sobretaxa acaba por assumir contornos meramente arrecadatórios, perdendo o respaldo advindo dos eventuais efeitos benéficos que serviriam de pretexto à sua cobrança.

Do contexto brasileiro

No caso brasileiro, a pertinência da sobretaxa de refrigerantes e bebidas açucaradas precisa ser vista ainda com mais cuidado, uma vez que a carga tributária nacional sobre a industrialização de tais produtos é atualmente a maior da América Latina, estando próximo de 50%. Isso faz com que o Brasil exija mais tributos até do que países que já instituíram o sugar tax, como é o caso do Chile (cuja carga total está em torno de 43%), do México (em torno de 31%) e do Equador (em torno de 25%).

Para além disso, ao contrário do que se poderia supor, os refrigerantes e bebidas açucaradas não estão em uma posição de destaque no ranking nacional dos alimentos mais consumidos. Conforme divulgado pelo IBGE, o consumo de refrigerantes nos lares brasileiros representa 1,2% das calorias totais consumidas, chegando a 1,7% quando somada às demais bebidas açucaradas[2].

Essa constatação remete-nos, de pronto, a questionamentos acerca da legitimidade da sobretaxa somente sobre tais produtos, atribuindo-lhes tratamento tributário mais gravoso, quando comparados a outros alimentos tão calóricos quanto e inclusive com maior concentração de açúcar. Principalmente se levarmos em conta que a queda na frequência do consumo de refrigerantes no Brasil entre 2007 e 2018, não foi acompanhada da redução da obesidade no mesmo período, tendo essa em verdade crescido, segundo dados do Ministério da Saúde (VIGITEL BRASIL 2018[3]).

A sedução exercida por ideias que invocam a busca do bem-estar social e a promoção da saúde pública, pois, não pode fazer com que essas mesmas ideias deixem de ser submetidas ao crivo da racionalidade, da ciência e da experimentação previamente à sua efetiva implementação. Caso contrário, talvez precisemos de muito mais do que dois anos para conseguir voltar atrás, em contraste ao exemplo dinamarquês.

[1] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1707043&filename=PL+250/2019>.

[2] Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27298-pof-2017-2018-alimentos-frescos-e-preparacoes-culinarias-predominam-no-padrao-alimentar-nacional>.

[3] Disponível em: <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/25/vigitel-brasil-2018.pdf>.

Sacha Calmon Navarro Coêlho, advogado, coordenador da especialização em direito tributário da Faculdade Milton Campos, ex-professor titular da UFMG e UFRJ. Doutor em Direito.

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