Opinião

STJ e quebra de sigilo fiscal

O tratamento cuidadoso dos dados, especialmente dos sigilosos, é uma tendência mundial

21 de março de 2022

Por Ana Carolina Piovesana e Danyelle Galvão*

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico

No mês passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o Ministério Público não pode requisitar declarações de Imposto de Renda e informações fiscais diretamente à Receita Federal. É, portanto, obrigatória a intervenção do Poder Judiciário para que os dados protegidos pelo sigilo fiscal sejam acessados pelo órgão de acusação, que não poderá solicitá-los ao Fisco sem obter uma ordem judicial.

A decisão foi proferida pela 3ª Seção do STJ durante o julgamento de dois recursos em habeas corpus impetrados pelas autoras deste artigo, com a participação de nove dos dez ministros que atuam em matéria penal, representando um entendimento uniforme das duas turmas criminais da Corte.

Apesar de não ter – por força de lei – caráter vinculante, trata-se de uma decisão colegiada, proferida por um tribunal superior, que tem como função primordial a unificação da interpretação da lei federal e funciona como órgão de revisão das decisões dos juízes de primeiro grau e tribunais estaduais e federais.

A aplicação a outros casos que já tramitam e o reconhecimento de eventual ilegalidade ainda dependerá de impulso dos advogados e análise judicial, mas o entendimento agora consolidado pelo STJ servirá de parâmetro para atuação ministerial e norteará futuras decisões do Poder Judiciário em todo o país.

O precedente fixado pelo Superior Tribunal de Justiça ganhou enorme destaque na comunidade jurídica e é importante em vários aspectos. Primeiro, porque a decisão não proibiu o Ministério Público de ter acesso às informações fiscais, nem garantiu um sigilo absoluto das declarações anualmente apresentadas à Receita Federal.

O STJ apenas reforçou os limites já estabelecidos na Constituição Federal. Os dados de natureza fiscal podem ser acessados, desde que exista autorização da Justiça.

A exigência de que o sigilo fiscal somente seja afastado por meio de decisão judicial também é relevante, porque representa uma garantia de que apenas informações pertinentes e necessárias à investigação ou ao processo criminal serão acessadas pelo Ministério Público.

A obtenção dos dados sigilosos dependerá de um pedido formal ao juiz. A acusação deverá expor, primordialmente, “de quem quer as informações”, “por que quer as informações”, “de qual período quer”, “qual crime” e “quais os indícios desse crime” que fundamentam a obtenção dos dados sigilosos. Somente após uma análise judicial sobre a pertinência e a necessidade da medida excepcional, as informações fiscais e as declarações de Imposto de Renda serão compartilhadas pela Receita Federal.

A intervenção judicial funciona, portanto, como uma espécie de filtro, impedindo que ocorram devassas indiscriminadas na vida privada dos cidadãos ou abusos persecutórios. É o caso, por exemplo, da prática denominada de “fishing expedition” ou pescaria probatória, em que há uma procura especulativa por elementos de provas sem causa provável.

Em outras palavras, a solicitação direta de dados à Receita Federal pode ensejar, a depender da situação, verdadeira pesca predatória de provas, uma vez que não demanda qualquer espécie de justificativa para o acesso, seja em relação ao alvo das medidas (pessoas físicas ou jurídicas), seja em relação à pertinência ou necessidade da solicitação.

A exigência de ordem judicial ainda garante que todos os acessos aos dados protegidos pelo sigilo fiscal ocorram dentro de um procedimento investigatório formal.

A questão pode parecer desimportante, mas não é. Exigir uma decisão judicial implica em garantir que a obtenção dos dados fiscais ocorra no bojo de um procedimento numerado pelo Poder Judiciário, com registro perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), acessível às partes envolvidas, que dele poderão se defender e indicar eventuais ilegalidades. Afasta-se, com isso, a possibilidade de atos secretos, praticados em investigações informais, sem qualquer espécie de controle ou supervisão por parte do indivíduo ou das instâncias judiciais.

A impossibilidade de requisição direta de informações protegidas pelo sigilo fiscal tampouco acarreta um atraso nas investigações ou na tramitação dos processos criminais, não criando qualquer tipo de empecilho para a apuração de infrações penais.

Pelo contrário. Desde 2007, existe uma parceria do Conselho Nacional de Justiça – e consequentemente de todo o Poder Judiciário – com a Receita Federal: o programa Infojud, conhecido “Sistema de Informações ao Judiciário”, que possibilita aos magistrados, por meio de certificação digital, ter acesso às declarações fiscais registradas perante a Receita Federal.

O procedimento que antes era feito por ofícios e demorava até alguns meses para se efetivar, há 15 anos, é realizado eletronicamente, por meio de sistema auditável, com registros de acesso e que exigem cadastro e certificação digital. Mais rápido e seguro, inclusive.

Com acerto, portanto, a decisão do STJ, pois reforçou a proteção constitucional ao sigilo fiscal, não o tornou absoluto, mas estabeleceu uma barreira de contenção: a quebra do sigilo fiscal depende de autorização judicial. O tratamento cuidadoso dos dados, especialmente dos sigilosos, é uma tendência mundial e a nova jurisprudência fixada pela Corte Superior demonstra que o Brasil caminha no mesmo sentido.

Ana Carolina Piovesana e Danyelle Galvão são, respectivamente, advogada criminal, especialista em Direito Penal econômico pela FGV e sócia do Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados; e advogada criminal, doutora em processo pela USP e sócia do Galvão e Raca Advogados

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