Opinião

Sim, a competência é da Justiça do Trabalho

A relação de trabalho é mais abrangente que a de emprego

28 de junho de 2021

Por Olga Vishnevsky Fortes*

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico

A Justiça do Trabalho está diminuída. Estamos perdendo nossa competência e isso é um fato inegável. Não entremos na seara política ou ideológica para discutirmos o tema, pois acho que um dos problemas é justamente esse, colocar a política – e aqui não falo do conceito clássico da palavra -, onde ela não deveria estar como protagonista de decisões que deveriam ser precipuamente técnicas.

Antes da Emenda Constitucional (EC) nº 45, de 2004, o “caput” do artigo 114 da Constituição Federal dizia que a Justiça do Trabalho era competente para “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas”.

A EC 45 aumentou a competência da Justiça do Trabalho ao dispor, na nova redação do artigo 114, que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: as ações oriundas da relação de trabalho, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.

A doutrina e a jurisprudência foram, à época, uníssonas quanto ao hialino aumento da competência da Justiça do Trabalho. A competência precípua para conciliar e julgar dissídios relativos às relações de emprego passou a se referir, por mais de uma vez, às relações de trabalho. E qual seria a diferença?

A relação de trabalho é mais abrangente que a de emprego porque se refere a todo trabalho desenvolvido por uma pessoa humana em benefício de outra ou de uma empresa. Não se exige que haja subordinação na relação de trabalho, mas a prestação de serviços – trabalho humano -, e a tomada desses, mediante remuneração.

Diferentemente da relação comercial, em que duas empresas possuem a organização dos fatores de produção e negociam entre si e em igualdade de condições para produzir e fazer circular bens e serviços, a relação de trabalho envolve em um dos polos a pessoa, que oferece sua força de trabalho e, em razão disso, necessita estar sob o manto dos princípios do direito do trabalho.

Isso não quer dizer que o trabalho humano prestado por meio de um contrato válido haverá de ser sempre regulado pela CLT, mas pela própria lei especial, que discorre sobre a tipicidade da contratação, como ocorre, por exemplo, nos contratos de aprendizagem, de estágio, do trabalhador portuário não empregado e do representante comercial. Na ausência de lei especial, a prestação será analisada à luz do Código Civil, como permite, de forma expressa, o artigo 8º, parágrafo 1º, da CLT.

A escolha do legislador constituinte derivado foi no sentido de emprestar às relações de trabalho um necessário equilíbrio de forças, tal qual ocorre nas relações de consumo e de emprego.

Ocorre que em recente decisão no RE 606003, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu não haver relação de trabalho entre representante comercial autônomo e representada, mas relação comercial. E, portanto, a competência para ação promovida para pleitear direitos do representante seria da Justiça Comum. Creio que houve um julgamento de mérito da relação quando a questão deveria estar adstrita ao pressuposto processual de validade da competência.

Há na decisão alguns pontos de necessária abordagem. Quando me referi ao contrato válido de prestação de serviços havido em uma relação de trabalho, levei em conta a causa de pedir – fatos e fundamentos do pedido -, de um representante comercial que litiga para pleitear direitos oriundos do contrato de representação. O juiz do trabalho, com a competência material que lhe foi concedida pela EC 45, apreciará o pedido aplicando a Lei nº 4886, de 1965, sempre mediante ao princípio da primazia da realidade, que nos faz ver além da prova meramente documental, que é de produção ou de titularidade da parte mais forte da relação.

Se, no entanto, a causa de pedir se referir a fraude contratual e ao pedido de reconhecimento de vínculo de emprego pela subordinação, o juiz do trabalho, com a mesma competência material que lhe foi concedida pela EC 45, apreciará o pedido e, reconhecendo o vínculo, aplicará a CLT. Afastando-o, poderá apreciar pedido alternativo relativo ao contrato de representação, ou na ausência dele, julgará improcedente o vínculo. Também nessa hipótese há a aplicação do princípio da primazia da realidade.

E qual a razão de se observar a causa de pedir nas duas hipóteses? Porque é ela que define a competência, exemplo contido na Súmula 736 do STF. Mas, de se observar que no caso do representante comercial, em qualquer das hipóteses a relação de trabalho define a competência da Justiça do Trabalho.

Não há, então, hipótese jurídica viável de desconsiderar a causa de pedir – e isso se infere da mencionada decisão sumulada pelo próprio STF -, para a definição de competência, mormente quando a decisão faz a sobreposição de uma relação negocial formal para obliterar a relação de trabalho constitucionalmente reconhecida. Não há, outrossim, como definir a competência da Justiça Comum para apreciar os pedidos antes que a Justiça do Trabalho o faça, pois a competência material da primeira é residual e da segunda é especial.

É comezinho na definição da competência que se verifique, por primeiro, se a competência material é da Justiça Especializada para, em sendo negativa a resposta, se definir pela competência da Justiça Comum. O caminho inverso é contrário à toda e qualquer doutrina sobre o tema.

A Justiça do Trabalho é especializada, possui princípios próprios, e seu processo, ao contrário do que acontece com outros ramos do Judiciário, envolve dezenas de pedidos feitos em cada ação. Há que se reconhecer a nossa competência. Em todos os sentidos.

*Olga Vishnevsky Fortes é juíza titular da 7ª Vara do Trabalho de São Paulo, presidente em exercício da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT), pós-graduada em Processo Civil pela FMU e em Administração Judiciária pela Fundação Getulio Vargas

Notícias Relacionadas

Opinião

Covid-19, crise institucional e divisão de competências

Soluções encontradas pelo governo devem obedecer a Constituição

Opinião

Marília Mendonça e a sucessão familiar

Interrupção prematura da vida nos coloca novamente diante da fragilidade humana