Por Maristela Basso*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Estão em evidência as discussões sobre os crimes ao meio ambiente no Brasil e, não raras vezes, aparecem referências e citações à Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98). Isso é bom, mas não é tudo e não basta.
Sabe-se que, para uma área total de 4.196.943 km² (Portal Amazônia) de florestas na Amazônia, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelam 34% de taxa de derrubada de árvores e matas referente ao período de agosto de 2019 a junho de 2020, em relação aos dados dos 12 meses anteriores. Mais de 9,2 mil km² de florestas foram devastados nesse período, comparados a 6,8 mil km² no período de agosto de 2018 a julho de 2019, um aumento de 30% em relação a 2017 e 2018.
Várias fontes revelam ainda que 11.605 espécies relacionadas à fauna e cerca de 40 mil à flora desapareceram (Banco Mundial, Biologia Net, Vitamazonia).
Dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) dão conta que, em março deste ano, os desmatamentos na Amazônia atingiram 810 km², isto é, foram 216% maior que aqueles do ano anterior, equivalentes a cerca de 34 milhões de árvores — mesmo considerando que nos meses de março a derrubada costuma diminuir devido às dificuldades de desmatar durante o período chuvoso.
Sabe-se, ademais, que em abril as áreas de alerta de desmatamento cresceram 42% em relação ao mesmo mês do ano passado. Número recorde para o mês de abril. Isso equivale a reconhecer que em 2021 foram 581 km² (42%), até o dia 29 de abril, contra 407 km² em abril de 2020. Segundo dados do Inpe, nos quatro primeiros meses de 2021, foram 1.157 km² de desmatamento na região — o maior em seis anos. A tendência, entretanto, é de aumentar ainda mais, haja vista o período de secas que se iniciou em maio.
Neste mês, a prestigiada Revista Nature, publicou artigo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, no qual afirmam que “a conta já chegou” para o agronegócio brasileiro (agricultura e pecuária), atingindo a cifra de R$ 5,7 bilhões de prejuízos, sem considerar os danos de difícil apuração aos territórios indígenas e ribeirinhos.
Os dados são escandalosos.
Quando um pedaço de mata passa a estar cercado por áreas abertas, ocorre um aumento da incidência de luz solar no entorno do fragmento. Essa maior luminosidade provoca também aumento da temperatura do solo e diminuição da unidade do ar.
A mudança na estrutura da floresta, como é sabido, afeta sobremaneira também as comunidades de animais.
Muitos insetos, que convivem bem com as plantas heliófitas, tendem a aumentar no fragmento devastado. Então não demora para que alguns vertebrados, que só sobrevivem no interior das matas, desapareçam rapidamente. Os anfíbios, como os sapos e rãs, que são sensíveis à perda de umidade, são geralmente os primeiros a serem afetados pelo efeito da borda. Com o avanço da borda para o interior do fragmento, os pássaros menores, que fazem ninhos em árvores, ficam cada vez mais expostos à predação por aves de rapina e também desaparecem (Deise Miola, doutora em ecologia, conservação e manejo de vida silvestre).
Mas isso tudo parece já ser do conhecimento público.
Contudo, o que ainda não está evidente é que a “floresta é uma grande biblioteca de medicamentos naturais” (Greenpeace) e “é a morada de grande parte da biodiversidade do planeta, muitas vezes desconhecida também para a ciência” (professora Yara Schaeffer Novelli/USP).
Somente na Amazônia, nos últimos anos, foram documentadas cerca de 600 novas espécies, mesmo com baixo ou quase nenhum investimento do Brasil em ciência e pesquisa.
Em dez anos (1999-2009), mais de 1,2 mil novas espécies foram descritas para a região: 639 plantas, 257 peixes, 216 anfíbios, 55 répteis, 39 mamíferos e 16 aves, entre outros seres vivos. E 15% de toda a biodiversidade do planeta está na Amazônia. São cerca de 60 mil espécies de plantas e animais vertebrados (primatas, aves e peixes de água doce).
Mais de 600 tipos diferentes de habitats terrestres e de água doce, como: florestas tropicais úmidas, florestas de várzea, savanas, pântanos, florestas de montanhas, florestas de bambus, florestas abertas e florestas de palmeira (Vitamazonia).
São também mais de 40 mil espécies de plantas: andiroba, castanheira, açaí, seringueira etc. Mais de 300 espécies de mamíferos: peixe-boi-da-amazônia, boto vermelho ou cor-de-rosa, lontra, ariranha. Três mil espécies de peixes; 1,3 mil espécies de aves; 378 espécies de répteis; ademais de outras 4,9 mil espécies, algumas endêmicas, isto é, só aparecem ali. Sem falar de outras espécies ainda desconhecidas e já ameaçadas de extinção. Um complexo que habita 4.196.943 km² de florestas densas e abertas (Portal Amazonia e Banco Mundial).
Todo esse universo de vida encontra-se serveramente ameaçado pelo desmatamento e desmantelamento da Amazônia. Sem falar dos rios voadores, do conhecimento tradicional das comunidades indígenas, ribeirinhas e caiçaras, do patrimonio genêtico e do folclore, que são extintos sem piedade.
É desolador.
Em florestas conservadas e em equilíbrio, a diversidade de espécies evita e mitiga a proliferação de doenças provocadas por vírus, germes, bactérias e outros agentes patogênicos.
No caso de florestas derrubadas, estudos apontam o aumento da incidência de malária, o mesmo ocorrendo no caso de doenças zoonóticas, transmitidas de animais para humanos, ampliando em mais de 30% o aparecimento de males como Zika, Ebola e Nipah, conectados a mudanças do uso do solo (Greenpeace).
A Amazônia, portanto, sustenta vários serviços ecosistêmicos e serve de enorme repositório de biodiversidade, não apenas para os países amazônicos como para toda a humanidade.
Do que se conclui que estão em curso no Brasil, de forma acelerada, não apenas crimes ao meio ambiente, sujeitos a sanções administrativas, civis e penais por parte de seus perpetradores e dos agentes públicos que têm o dever de proteger e vigiar, com base na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), como também crimes contra a diversidade biológica. Estes previstos na Convenção da Diversidade Biológica (CDB), também conhecida como Convenção da Biodiversidade, em vigor no Brasil por meio do Decreto Nº 2.519, de 16 de março de 1998.
O Brasil é um país megabiodiverso.
Quanto mais rica é a diversidade biológica, maior é a oportunidade que um país possui para descobertas no âmbito da medicina, da alimentação, do desenvolvimento econômico, e para encontrar respostas adaptativas às alterações ambientais.
A variedade da vida e a utilização sustentável dos seus recursos são uma medida de segurança e um enorme patrimônio. Razão pela qual os crimes ambientais e contra a diversidade biológica são considerados crimes contra a humanidade, passíveis, por conseguinte, de responsabilização não apenas nos tribunais nacionais como também, e especialmente, nas instâncias internacionais, como, por exemplo, no Secretariado da Convenção da Diversidade Biológica, nas Comissões de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como no Tribunal Penal Internacional (TPI).
Importante considerar, também, que a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em nosso Congresso Nacional para apurar os crimes contra o meio ambiente e contra a diversidade biológica poderia, sem sombra de dúvida, contribuir para a revisão das políticas públicas ambientais e biodiversas do país, ademais de identificar e catalogar as práticas criminosas e seus responsáveis, quantificar as perdas e danos e promover reparações, e, especialmente, revelar para o mundo que ainda existem agentes públicos de bem no Brasil.
Maristela Basso é sócia do escritório Nelson Wilians & Advogados Associados e professora de Direito Internacional Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).