*Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo
Por Valdir Moysés Simão
[RESUMO] Suspensão do pagamento de multas que Odebrecht deveria pagar após acordo com Ministério Público Federal foi alvo de duras críticas, mas precisa ser analisada de forma honesta e isenta. Irregularidades e violações constitucionais demonstradas nas ações da Lava Jato macularam as negociações, o que torna necessária a revisão de forma geral dos acordos de leniência no país.
Teve grande repercussão a recente decisão de Dias Toffoli, ministro do STF, que suspendeu o pagamento dos valores incluídos no acordo de leniência da Novonor S.A. (antiga Odebrecht S.A.). Em comentários bastante duros e de pouca profundidade, alguns editoriais classificaram a medida como despudorada, escárnio e insulto aos brasileiros.
Para uma análise honesta e isenta é importante saber do que trata a ação, bem como o alcance da decisão ora comentada. É preciso ainda conhecer um pouco melhor o instituto do acordo de leniência, seus princípios e requisitos fundamentais.
Em síntese, a petição da empresa, deferida pela decisão do ministro, solicita acesso ao material coletado no âmbito da Operação Spoofing, para analisar a higidez do acordo de leniência celebrado por ela com o Ministério Público Federal (MPF).
Caso constatada qualquer ilegalidade ou violação de princípio fundamental, a empresa requer a revisão e saneamento do acordo, inclusive aquele celebrado com a Controladoria-Geral da União (CGU) e Advocacia-Geral da União (AGU). Requer ainda a suspensão das obrigações pecuniárias até que essa revisão seja feita, o que impedirá eventual rescisão do acordo de leniência por inadimplência financeira.
A Operação Spoofing investigou invasão a contas do aplicativo de mensagem Telegram utilizadas por autoridades públicas, entre elas procuradores e o então juiz (Sergio Moro) à frente da Operação Lava Jato.
As mensagens capturadas, algumas transcritas na petição, demonstram várias violações a garantias constitucionais e princípios aplicáveis à administração pública e ao sistema de Justiça, além de conter indícios de que determinados requisitos legais aplicáveis ao acordo de leniência foram desrespeitados.
O acordo de leniência é um instrumento previsto na Lei Anticorrupção (LAC) em que a empresa colaboradora reconhece sua responsabilidade pela prática de determinado ilícito, proporciona provas e identifica responsáveis, em troca de uma diminuição na sanção e, se for o caso, isenção da penalidade de proibição de contratar com a administração pública.
Os primeiros acordos de leniência para casos de corrupção foram negociados por procuradores federais no âmbito da Lava Jato, a partir de um exercício interpretativo chamado “microsistema anticorrupção brasileiro”, que buscou dar legitimidade ao MPF para a celebração. Isso porque a LAC atribui à CGU a competência exclusiva para firmar esses acordos no âmbito do Poder Executivo Federal.
Essa verdadeira invasão institucional trouxe vários problemas, não só em relação à formalidade do instrumento negocial, mas também pela ausência de rigor metodológico para fixar valores de reparação e multa. Essa é a principal fonte da insegurança jurídica dos acordos de leniência. Explico.
Várias decisões judiciais reconheceram a ilegitimidade do MPF para a celebração de acordos de leniência, o que fez com que as empresas tivessem que buscar uma nova negociação com a CGU e AGU. Se assim não fizessem, estariam sujeitas à aplicação de sanções administrativas (multa e declaração de inidoneidade) e ações judiciais de reparação.
Por seu lado, o Tribunal de Contas da União (TCU) instaurou vários processos de tomadas de contas, por não concordar que fosse dada quitação às empresas em relação a valores de reparação de danos. Assim, as empresas que celebraram acordos com o MPF viram frustrada sua expectativa de, rapidamente, retomarem suas atividades.
Outra questão de extrema relevância é que os acordos empresariais foram negociados juntamente com os acordos de colaboração de pessoas físicas, empresários, dirigentes e empregados, prevalecendo, ao final, o interesse individual das pessoas envolvidas, em detrimento do coletivo, da entidade empresarial.
É princípio do acordo de leniência a preservação da empresa, que cumpre uma função social como produtora de riqueza e geradora de empregos e renda. As mensagens trazidas na petição demonstram que a persecução penal, de competência do MPF, foi utilizada como instrumento de coerção para que a empresa concordasse com os termos do acordo celebrado, maculando o princípio da voluntariedade.
No aspecto financeiro, a questão também revela extrema gravidade, pela ausência de metodologia parametrizada para apuração de valores e pela possível exigência de verbas indevidas.
As obrigações financeiras incluídas em acordo de leniência podem ter a natureza de sanção, a multa, ou de ressarcimento, a reparação de danos. Em relação à multa, o regulamento da LAC estabelece parâmetros a serem utilizados para a definição da alíquota a ser aplicada sobre o faturamento anual da empresa.
Trata-se de sanção de natureza administrativa, cuja competência originária para aplicação é do órgão público lesado, após processo de responsabilização que garanta o contraditório e a ampla defesa. Mas há também uma outra sanção pecuniária, prevista na Lei de Improbidade Administrativa (LIA), incluída em vários acordos de leniência ainda que, há época, houvesse proibição expressa de transação, acordo ou conciliação nas ações judiciais de improbidade.
A exigência cumulativa das sanções da LAC e da LIA nos acordos de leniência, por si só, é motivo para revisão dos valores pactuados, uma vez que alteração legislativa recente veda essa cumulatividade, disposição que, entendo, deve ser aplicada retroativamente por ser benéfica à empresa.
A rubrica de maior impacto financeiro, e também de maior subjetividade, é a reparação de danos. A disciplina dos acordos de leniência evoluiu em relação ao método de apuração nesses casos. Somente pode ser incluída na negociação do acordo a parcela incontroversa do dano, admitido pela pessoa jurídica ou decorrente de decisão definitiva no âmbito do devido processo administrativo ou judicial.
Registre-se que, no momento da celebração dos acordos no âmbito da Lava Jato, não havia qualquer decisão transitada em julgado em processo administrativo, de tomada de contas ou judicial, que determinasse com a necessária certeza eventual dano ao erário causado pelas empresas colaboradoras.
A legislação também estabelece que a empresa colaboradora deve perder, em favor do ente lesado ou da União, conforme o caso, os valores correspondentes ao acréscimo patrimonial indevido ou ao enriquecimento ilícito direta ou indiretamente obtido da infração, nos termos e nos montantes definidos na negociação.
Entretanto, se de determinado ato ilícito decorra, simultaneamente, dano ao ente lesado e acréscimo patrimonial indevido à pessoa jurídica responsável pela prática do ato, e haja identidade entre ambos, os valores a eles correspondentes serão computados uma única vez para fins de quantificação do valor a ser adimplido a partir do acordo de leniência.
Nessa dimensão, do ressarcimento de danos, também se encontra justificativa para a revisão das obrigações financeiras fixadas no acordo. Se valores de reparação foram definidos unilateralmente pela administração ou Ministério Público, sem o reconhecimento da empresa de que, de fato, o dano apurado é devido, faz-se necessária a revisão para expurgar do valor a ser pago o dano controverso, até porque, como já registramos, os acordos de leniência não dão quitação à empresa em relação ao valor do dano ao erário.
Também faz-se necessária a revisão para verificar se há cumulatividade de valores de ressarcimento oriundos de danos incontroversos e enriquecimento ilícito pelo mesmo fato, princípio não observado na maioria dos acordos no âmbito da Lava Jato, bem como a existência de rubricas de ressarcimento caracterizadas de forma atípica como dano. Benefícios fiscais decorrentes de lei, por exemplo.
É natural que o instituto da leniência, inaugurado há pouco no Brasil, passe por aprimoramentos que contribuam para sua maturidade e segurança jurídica. A revisão dos acordos celebrados, em sua dimensão financeira, não deve ser vista como tabu.
Mudanças legislativas, de interpretação em relação à ilicitude dos fatos relatados nos acordos ou mesmo erros materiais, devem motivar essa revisão. Aliás, é disso que trata a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 1.051, que tramita no STF e da qual sou signatário.
É fundamental preservar o instrumento negocial da leniência e, da mesma forma, a empresa colaboradora que denuncia eventuais abusos cometidos na negociação e busca equacionar os valores de ressarcimento para o que entende devido, observada ainda sua capacidade de pagamento. Até porque, só paga quem está vivo.
*Valdir Moysés Simão é advogado, foi ministro da CGU (Controladoria-Geral da União) e do Planejamento (governo Dilma)