Por Daniel Gerber e Thaynara Rocha*
Artigo publicado originalmente na ConJur
O tema do racismo, assim como todos os demais que envolvem política identitária, jamais deixará de levantar polêmica. De início, importante ressaltar a relevância da promulgação da Lei nº 7.716/89, que definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Este diploma legal teve como premissa o lamentável histórico do Brasil, no qual o racismo contra os negros esteve e continua presente. Na tentativa de erradicar essa realidade, a Lei estabeleceu, em seu artigo 1º, que, que serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Muito a criação do referido diploma seja uma referência histórico-cultural onde perdura o racismo, majoritariamente, contra a população negra, nota-se que o legislador não especificou qual a raça a ser tutelada.
Pelo contrário, sendo o racismo contra qualquer raça um instrumento de separação social inaceitável em tempos que se pretendem civilizados, a proteção legal abrange todas elas, seja a negra, parda, branca, indígena, dentre outras.
Diante desta premissa é que se faz a crítica ao entendimento adotado nos autos nº 3466-46.2019.4.01.3500, que julgou improcedente uma denúncia ofertada pelo Ministério Público contra pessoa negra que pregou, com incitação ao ódio, a separação de sua raça com a da branca, afirmando que tinha nojo desta última e dos relacionamentos entre mulheres negras com homens brancos.
A decisão absolutória afirmou não fazer sentido buscar-se no diploma legal a “finalidade de proteger os grupos majoritariamente brancos contra discriminação, até porque, contra esse grupo, a discriminação que existe no Brasil sempre foi positiva, ou seja, a esse grupo foram reservados os melhores empregos, hospitais, escolas, cargos públicos etc.”.
Pois bem: sem ignorar o panorama social majoritário que levou à promulgação da Lei nº 7.716/89 — muito menos desmerecendo-o —, tal posicionamento não se sustenta pelos vieses jurídico e social.
Da leitura do artigo 1ª da referida Lei, nota-se, claramente, que se trata de um crime comum, ou seja, o tipo penal não exige qualquer qualidade para o sujeito ativo ou passivo, podendo qualquer pessoa vir a ser responsabilizada.
Além disso, se quisesse o legislador especificar qual a raça, cor, etnia e religião a ser protegida, assim o teria feito.
Assim, ao trazer um conceito aberto de raça e cor e objetivar e punir o separatismo que a discriminação gera no corpo social, almejou o legislador proteger a todas proibindo o sujeito de fazer uso da garantia da livre expressão para incitar ao ódio, a discriminação e a separação racial sem que seja penalizado de alguma forma.
Na pior das hipóteses, se houver ceticismo quanto à eficiência do Direito Penal na imposição de uma agenda positiva — onde todos passem a respeitar verdadeiramente o próximo —, serve, a Lei, para evitar que o ódio continue a se disseminar e, mediante interiorização e normalização de um discurso beligerante, gere a continuidade infindável de conflitos violentos entre as raças.
Esse é o entendimento da nossa Suprema Corte, inclusive, ao destacar no julgamento do Habeas Corpus n. 82424, que “o preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra”. “Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.”
Ora, pelo teor da decisão judicial aqui criticada percebe-se que existe um desprezo pelos efeitos nefastos que a incitação ao racismo gera na sociedade, ainda que realizada contra quem, historicamente, não padeceu deste mal.
Inclusive, como bem salientou Martins Luther King que “para desenvolver uma consciência negra e sentir que somos um povo não é preciso que desprezemos a raça branca como um todo”. “Não é a raça em si que combatemos, mas as políticas e ideologias que líderes dessa raça formularam para perpetuar a opressão.”
Resta claro, portanto, que a ausência de danos no passado (inexistência de racismo contra brancos) não garante ausência de danos no futuro. Pelo contrário, a ideia de que inexiste atos de racismo contra a raça branca nada mais faz do que liberar discursos que, com o tempo, se converterão exatamente no mal que se deseja evitar. Deixar de punir o ato, por considerá-lo inexistente diante da história passada nada mais é do que ignorar quer tudo tem um começo.
Assim, volta-se ao ponto: em razão da não distinção pela Lei sobre qual raça deveria ser tutelada, assim como do evidente potencial lesivo e cultural que a incitação ao ódio de um povo conta outro gera, toda pessoa que praticar racismo, independentemente das circunstâncias, deve ser punida proporcionalmente ao caso.
Daniel Gerber é advogado da área penal com foco em Gestão de Crises Político e Empresarial, especialista em Direito Penal Econômico, mestre em Ciências Criminais e sócio do escritório Daniel Gerber Advogados Associados.
Thaynara Rocha é sócia do Daniel Gerber Advogados Associados.