Por Camila Torres, Dora Cavalcanti, Marcela Ortiz e Valentina Jugmann*
Artigo publicado originalmente no Estadão
O ano de 2021 traz um desafio verdadeiramente histórico para todas e todos os profissionais do Direito que querem uma OAB mais próxima de suas bases e representativa da sociedade brasileira. Muitas advogadas suaram a camisa para que, no fim de 2020, nosso Conselho Federal deliberasse que metade dos cargos nas próximas diretorias da OAB e de suas seccionais será ocupada por mulheres, e 30% deles, reservados para as pessoas negras, que tiveram papel fundamental na vitória. Em 2021, temos sobre os ombros a responsabilidade de consolidar essa conquista, combater tentativas de retrocesso e avançar para tornar nossa entidade mais contemporânea e representativa.
Também em dezembro passado, Viviane Girardi foi a primeira mulher, depois de 77 anos, eleita para presidir a AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), e Marina Coelho tornou-se presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), instituto que acaba de instituir 20% de vagas para negras e negros em sua Diretoria e Conselho. Podem parecer conquistas menores, uma vez que nós, mulheres, já chegamos aos mais altos cargos do STF, do STJ e da Procuradoria Geral da República. Acontece que, a despeito do avanço da mulher em todas as esferas de poder no mundo, o machismo estrutural, da mesma forma que o racismo, resiste como força contrária à oxigenação da Advocacia no Brasil.
O empenho de mulheres notáveis foi fundamental para desbravar espaços que há bem pouco tempo eram só masculinos. O que elas têm em comum, além de suas qualificações profissionais, é a trajetória de exceção. No STF somos duas entre 11 homens; no STJ, seis entre 33. O CNJ aponta que as mulheres são 56,6% dos servidores do Judiciário, mas ocupam só 20% dos cargos de desembargadores. Só no Pará as desembargadoras são maioria: 55,1%. Em São Paulo, o percentual é de apenas 9,3%.
Somos maioria entre os estudantes de Direito, os aprovados em concursos e em todas as instâncias em que dependemos mais de nossos esforços do que de indicações, conchavos e alianças. Os levantamentos sobre diversidade de gênero em escritórios de advocacia no Brasil mostram que as mulheres mal passam de um terço no quadro de sócios de capital. Essa desigualdade flagrante se reflete com nitidez na galeria de fotos dos presidentes das seccionais da OAB: todos os retratos são de homens, provando que, o ‘teto de vidro’ que impede e limita a ascensão feminina, também se faz presente na Ordem.
O fato de as mulheres serem 70% dos estudantes universitários no país, segundo o último Censo da Educação Superior, indica que o cenário retrógrado desenhado pelo machismo nos espaços de poder pode estar com os dias contados. Mas a mudança exige atitudes de todas e todos os que não se contentam com essa cara de passado.
De acordo com último censo do CNJ de 2018, em todos o país apenas 18% dos magistrados se declararam negras ou negros. Nos Tribunais Superiores somente 1,3% são negros e 7,6% pardos. Quanto tempo ainda levaremos para ver uma mulher negra no STF ou no STJ?
A luta das mulheres por mais espaços institucionais anda de mãos dadas com o movimento negro na advocacia. Não teremos uma OAB representativa se também não abraçarmos a pauta da equidade racial e o do protagonismo negro nos espaços de poder. Precisamos estar muito atentos e vigilantes para implementarmos de forma imediata a cota de 30% com segurança, inclusive nos cargos diretivos, sem fraudes ou subterfúgios.
Além de garantir que a paridade com equidade racial seja de fato implantada a partir deste ano em todas as seccionais, temos de estimular o protagonismo das mulheres – negras, indígenas, brancas, trans, PCDs; – no processo de construção das chapas que irão concorrer em 2021.
Muitas de nós começamos na profissão quando a OAB era eixo estruturante da advocacia e da construção de um país plural e democrático. No entanto, enquanto diversas esferas do poder político e empresarial foram se tornando mais permeáveis à diversidade, o mesmo conservadorismo que fecha portas à ascensão da mulher, da mulher negra em especial, acabou distanciando a OAB de suas bases. Vencer as estruturas do machismo e racismo, ao nosso ver, é fundamental para que a Ordem dos Advogados do Brasil recupere seu protagonismo na promoção do Estado de Direito, do direito de defesa e do respeito à Constituição Cidadã. O exemplo começa dentro de casa.
Não há dúvida de que a presença de mulheres em sua pluralidade no comando teria ajudado a OAB a ser mais zelosa com o direito dos brasileiros à saúde e menos tolerante com os desmandos e descuidos de governantes que agravaram a tragédia nacional e deixaram à própria sorte as populações vulneráveis e pobres. Hoje já superamos a marca insuportável de 300 mil mortos, com vacinação caótica e perspectiva de colapso irremediável do sistema de saúde. A ascensão de mais advogadas também levará a OAB a reagir com a veemência necessária contra a complacência dos governos com a letalidade das ações policiais, a violência doméstica e com o desrespeito sistemático à nossa dignidade.
A aprovação da paridade de gênero e da equidade racial criou a expectativa de maior diversidade nos processos de renovação da OAB. Não temos dúvida de que há advogadas competentes e aptas a ocuparem todos esses espaços com brilhantismo, mas é preciso estimular essa participação de forma efetiva. Precisamos que o trabalho das nossas destemidas Conselheiras Federais seja recompensado com mais candidaturas negras e femininas a cargos estratégicos, de Norte a Sul. Aguardem o que está vindo por aí.
*Camila Torres, Dora Cavalcanti, Marcela Ortiz e Valentina Jugmann são advogadas