Opinião

Política fiscal e direitos humanos: é hora de inverter a lógica

É preciso repensar profundamente as prioridades orçamentárias

19 de maio de 2021

Por Livi Gerbase*

Artigo publicado originalmente no Estadão

Aprovação da PEC Emergencial. Alterações na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Orçamento secreto. Estas são apenas as últimas gambiarras realizadas para burlar as regras fiscais vigentes com o intuito de liberar recursos para o enfrentamento da pandemia e para garantir o acordo político entre o Congresso e o Executivo. Se tantos puxadinhos são necessários, será que não está na hora de alterar estruturalmente as regras fiscais brasileiras?

A origem desse emaranhado de novas leis está no caráter rígido e contraproducente das nossas regras fiscais. A principal delas, o Teto de Gastos, congela os gastos federais por 20 anos. Tal medida impede o aumento das despesas mesmo em momentos de crise, uma política fundamental não só para a recuperação econômica, mas para a garantia do mínimo de bem-estar para a população em momentos de retrocesso. Nossas regras estão também na contramão do que está sendo discutido internacionalmente, como é o caso do plano anunciado pelo presidente americano Joe Biden, de liberação de U$ 4,15 trilhões ao longo de oito anos para reativar a economia no pós-pandemia. Fazer algo semelhante no Brasil é totalmente impossível dentro do sistema fiscal que temos hoje.

Mudanças estruturais precisam se pautar pela garantia de direitos humanos. É isso que propõem os “Princípios de Direitos Humanos na Política Fiscal”. O documento é uma criação de sete organizações da sociedade civil da América Latina, contando com as contribuições de representantes de governos, organismos especializados, instituições multilaterais, academia e movimentos sociais. Ele sintetiza as normas de direitos humanos que os Estados devem seguir na implementação de suas políticas tributárias e de gastos orçamentários. A ideia é que a política fiscal é um assunto de direitos humanos e, portanto, as regras que a regem devem ser interpretadas à luz das normas internacionais de direitos humanos e daquelas consagradas nas constituições nacionais.

Em suma, o que pode parecer revolucionário nada mais é do que implicações dos acordos assinados pelos países da região, entre eles o Brasil. O que esta iniciativa procura enfatizar é que a política fiscal não é, e nunca deve ser, um assunto técnico ininteligível, pois ela é a política pública na prática, isto é, sem recursos, não há direitos. Isso não significa que é possível gastar recursos indiscriminadamente, muito pelo contrário: dadas as restrições existentes para gastos, a mobilização de recursos deve ser feita de forma responsável e com foco em garantia de direitos, como a eliminação da pobreza e equidade de gênero e raça.

Regras fiscais restritivas não são uma singularidade brasileira. Com o fortalecimento da agenda neoliberal na América Latina, as políticas predominantes no âmbito fiscal, e em particular nos chamados programas de austeridade, de consolidação fiscal e de ajuste estrutural, geraram violações de direitos ao minar as capacidades dos Estados para respeitar, proteger e garantir o essencial para que a população possa viver com dignidade. Todos os países da região possuem, em maior ou menor medida, estruturas fiscais que não são justas: sistemas tributários regressivos, altos níveis de evasão e elisão fiscais, dívidas externas com condicionalidades que levam a cortes de recursos, entre outras.

Os Princípios de Direitos Humanos na Política Fiscal abraçam uma série de assuntos, como desigualdades, sustentabilidade ambiental, raça e gênero. Enfatizam, ainda, que todas as pessoas afetadas pela política fiscal precisam participar do processo de sua elaboração e monitoramento, principalmente as populações que enfrentam desigualdades históricas na América Latina, como povos indígenas, negros e mulheres. Além disso, os Princípios auferem responsabilidades não só para os Estados, mas também para organizações internacionais e empresas, pois todos influem na política fiscal e logo na garantia de direitos.

O documento também aponta diretrizes, isto é, caminhos a seguir para implementar estes princípios. Combate a paraísos fiscais, reformas tributárias progressivas e revisão dos incentivos fiscais são algumas das ações apontadas pelo documento que têm o poder de não só diminuir as desigualdades e gerar justiça social como também mobilizar recursos para enfrentar as consequências das crises sanitária e econômica na América Latina.

A prudência fiscal e econômica e o cumprimento das obrigações em direitos humanos não são objetivos mutuamente excludentes, dado que ambos se concentram na importância de medidas cuidadosamente elaboradas que evitem ao máximo os efeitos negativos nas pessoas. Os Princípios, neste sentido, podem orientar o Brasil para uma reestruturação de suas regras fiscais, colocando na frente o que mais importa, que é o bem-estar da população, e retomando o papel do Estado como um agente ativo no combate a crises econômicas. Em um momento onde a garantia de direitos está mais fragilizada do que nunca, é hora de o Brasil repensar profundamente suas prioridades orçamentárias.

*Livi Gerbase é assessora política do Inesc, atua na área de orçamento público, justiça fiscal e no monitoramento de instituições financeiras internacionais. É mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ e já coordenou o Núcleo de Inteligência em Políticas Públicas do governo de Mato Grosso do Sul

Notícias Relacionadas

Opinião

Debate sobre estratégia de segurança cibernética precisa avançar

Advogado aborda os desafios na proteção de sistemas de informação, computadores e softwares

Opinião

Oportunidades e desafios do Protocolo de Nagoia

A partir de junho, país passará a ser parte desse acordo internacional