Por José Del Chiaro e Luiz Felipe Rosa Ramos*
Artigo publicado originalmente no Estadão
Com a escalada dos números relacionados à pandemia da covid-19 no Brasil, muitos brasileiros podem estar se perguntando: o meu plano de saúde oferece cobertura para o tratamento? A pergunta tende a se tornar ainda mais inquietante para aqueles que contrataram o plano de saúde há pouco tempo e estariam, por esse motivo, no chamado período de carência (período após a contratação em que o consumidor não pode acessar alguns dos procedimentos previstos nos planos de saúde). Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) revelam que, em pelo menos quinze estados da federação, houve aumento no número de beneficiários de planos de saúde no último ano[1]. Conforme já começam a decidir os tribunais brasileiros, esses novos participantes do sistema de saúde suplementar também terão direito ao tratamento caso sejam acometidos pelo vírus, mas é importante observar que esse direito está sujeito a requisitos específicos.
Em 2 de abril de 2020, foi publicada decisão do juiz de direito da 15ª Vara Cível do TJDFT em Ação Civil Pública movida pela Defensoria Pública do Distrito Federal em face de diversos planos de saúde. O juiz determinou que as Rés prestassem atendimento de urgência e de emergência aos beneficiários de seus planos de saúde, sem exigência de prazo de carência, “em especial para aqueles com suspeita de contágio ou com resultados positivos pelo novo coronavírus”. Em 08 de abril, foi a vez da 27ª Vara Cível do TJ-SP conceder liminar para que operadora de plano de saúde custeie “todo o tratamento indicado para a patologia covid-19” que acometeu o autor da demanda, ainda que dentro do período de carência, “sobretudo quanto ao pagamento da internação e demais procedimentos necessários”. Recentemente, também a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ingressou com Ação Civil Pública perante planos de saúde para assegurar o tratamento independentemente do período de carência.
As decisões se baseiam no artigo 12, V, “c” da Lei 9.656/98, que estabelece, dentre as exigências mínimas do plano de saúde, período de carência com prazo máximo de vinte e quatro horas para a cobertura dos casos de urgência e emergência. Nesse sentido, a Súmula 597 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determina que “a cláusula contratual de plano de saúde que prevê carência para utilização dos serviços de assistência médica nas situações de emergência ou de urgência é considerada abusiva se ultrapassado o prazo máximo de 24 horas contado da data da contratação”. Também o TJ/SP editou súmula sobre o tema: “É abusiva a negativa de cobertura em atendimento de urgência e/ou emergência a pretexto de que está em curso período de carência que não seja o prazo de 24 horas estabelecido na Lei n. 9.656/98” (Súmula 103). Assim, tratamentos de emergência ou de urgência realizados após vinte e quatro horas da contratação deverão ser cobertos pelo plano.
A questão parece cristalina e compatível com os vultosos recursos recentemente disponibilizados às operadoras de planos de saúde para o enfrentamento da pandemia[2]. No entanto, seu exame jurídico comporta especificações. Em primeiro lugar, cumpre perguntar qual o segmento do plano de saúde contratado. Resolução do Conselho de Saúde Suplementar (CONSU) nº 13 dispôs que a garantia de cobertura de urgência e emergência, no caso do plano ambulatorial, está limitada até as primeiras doze horas do atendimento. A partir da necessidade de internação, a responsabilidade financeira passaria a ser do contratante. O STJ já ratificou o estabelecimento de cobertura, para os casos de urgência e de emergência, no segmento atendimento ambulatorial, limitada a doze horas (REsp 1764859/RS).
Além disso, é fundamental perceber que a exigência de carência máxima de vinte e quatro horas se limita a casos de emergência ou de urgência. A Lei 9.656/98 define casos de emergência como aqueles “que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente”. De menor relevância para o tema deste artigo, urgência é definida na lei como os casos “resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional”. A Portaria nº 354 do Ministério da Saúde, por sua vez, define emergência como a “constatação médica de condições de agravo a saúde que impliquem sofrimento intenso ou risco iminente de morte, exigindo, portanto, tratamento médico imediato”, além de trazer uma definição de “urgência” mais abrangente que a da lei. Está claro que a definição do que seja emergência comporta alguma interpretação, e não se pode dizer que seja uníssona mesmo entre médicos, uma vez que o que se entende por “emergência” pode depender mais da formação, especialidade e crenças do médico do que da ciência, como sugere o artigo What is an Emergency? (Foldes, Fischer and Kaminsky, 1994).
É possível cogitar até mesmo de uma diferenciação na cobertura conforme o caso seja de emergência ou de urgência. Segundo orientações publicadas no site da ANS[3], o tipo de plano e o tipo de atendimento impactam a cobertura. Por exemplo, mesmo no plano hospitalar, caso haja tratamento de uma situação que não seja de acidente pessoal (isto é, não urgente), durante o período de carência, a cobertura seria limitada a doze horas. Isso significa que situações de emergência, mas não de urgência, poderiam sofrer essa limitação temporal, para além da qual cessaria a responsabilidade financeira da operadora mesmo no plano hospitalar? Essa situação seria compatível com a jurisprudência sumulada do STJ (AgInt no AREsp 1269169/SP e Súmula 302) que estabelece ser abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado?
Segundo as informações já disponíveis sobre a covid-19, parte das pessoas acometidas pelo vírus pode desenvolver sintomas leves, que não caracterizariam, a princípio, “risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis” (emergência). Certamente, a grande maioria dos casos não configuram “acidentes pessoais ou complicações do processo gestacional” (urgência). As liminares concedidas até aqui pelo Poder Judiciário ainda não chegaram a estabelecer essas distinções, importantes, porém, para o esclarecimento da matéria.
A sistemática do período de carência para tratamento de coronavírus será objeto de relevantes discussões jurídicas nas próximas semanas, com efeitos práticos na vida de muitos indivíduos. Ao médico é reservado o papel central de declarar o “caso de emergência”, definido em lei, que limitará o período de carência a vinte e quatro horas. A colaboração criteriosa entre direito e medicina será crucial para o equilibrado enfrentamento da pandemia, ou, parafraseando uma das passagens mais instigantes do filósofo Michel Foucault: num sentido, é justo dizer que é sobre o fundo de uma experiência jurídica da emergência que se constituirá a ciência médica da covid-19[4].
*José Del Chiaro, ex-secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça e sócio-fundador da Advocacia José Del Chiaro
*Luiz Felipe Rosa Ramos, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), com período-sanduíche na Universidade Bielefeld (Alemanha). Fox Fellow pela Universidade Yale. Sócio da Advocacia José Del Chiaro
[4] Michel Foucault. História da loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978. p. 145 (no original, “num sentido, é justo dizer que é sobre o fundo de uma experiência jurídica da alienação que se constituiu a ciência médica das doenças mentais”)