Por Hamilton Dias de Souza e Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Desde o início da pandemia, diversas foram as situações em que a saúde de nossas instituições esteve à prova. Desafios enfrentados em todo o mundo se somaram a ingredientes internos. Alguns deles são problemas antigos, como ineficiência estatal, desaceleração econômica e contas públicas em desequilíbrio. Outros, porém, reportam-se ao tempo presente: nossa sociedade encontra-se polarizada como nunca; não há sequer início de consenso quanto a um projeto de futuro para o país; e, o que é inédito desde a redemocratização, a Presidência da República é ocupada por alguém cujas atitudes descontroladas e tendências autocráticas criam uma espécie de “pânico institucional”, no qual os demais poderes constituídos se veem forçados a agir. Contudo, ao se posicionarem a favor ou contra os abusos presidenciais, muitas vezes eles próprios acabam por cometer excessos. Daí a sensação de vivermos numa escalada autoritária que, longe de ser exclusiva do Poder Executivo, aparece também nos atos dos Poderes Legislativo e Judiciário.
Emblemática do autoritarismo parlamentar é a atitude condescendente do presidente da Câmara dos Deputados quanto aos pedidos de impeachment contra o presidente da República, seu aliado. De fato, são públicas e notórias suas ofensivas contra a fiabilidade de nosso sistema eleitoral, com insinuações de que “não aceitará” derrota em 2022, sem mencionar o desfile de veículos de guerra realizado na mesma data em que a Câmara dos Deputados deliberou sobre o “voto impresso”. Além disso, Bolsonaro tem elevado cada vez mais o tom contra o STF, o que ficou patente no último dia 7, quando, em praça pública, afirmou que “não obedecerá” às decisões do STF, na tentativa de intimidar a corte e incitar seus apoiadores a desacatarem decisões judiciais que conflitem com sua ideologia.
Sem entrar no mérito das denúncias contra Jair Bolsonaro, é fato que, numa democracia saudável, suas ofensivas seriam consideradas graves demais para não serem investigadas. Daí a expectativa generalizada de que, no mínimo, o assunto viesse a ser examinado pelo Congresso Nacional. Afinal, por violações orçamentárias muito menos delicadas, Dilma Rousseff foi processada, julgada e punida por crime de responsabilidade. No entanto, há extremo ceticismo quanto à abertura de processo contra Bolsonaro, pois ele seria “blindado” pelo presidente da Câmara, com base num poder “absoluto” (sic) para admitir ou não as denúncias, algumas pendentes há vários meses.
Diante disso, questão que se põe é: dada a dimensão desses acontecimentos, pode o presidente da Câmara dos Deputados deixar de se pronunciar sobre os pedidos de impeachment contra o presidente da República?
Numa democracia, todas as autoridades prestam contas de seus atos
A questão aqui discutida não é de “Direito comum”, pois o que está em jogo é a autoridade da Constituição e o direito fundamental do cidadão a ter respostas da cúpula legislativa para questões que extrapolam os interesses deste ou daquele grupo político.
De fato, constituições são atos inaugurais [1]: criam algo novo na ordem pública e estabelecem o horizonte de possibilidades institucionais de um país [2]. Ao ser promulgada, nossa Constituição instituiu uma República e a definiu como Estado democrático de Direito (artigo 1º). Assim, realizou-se escolha irretratável para o futuro [3], excluindo-se a possibilidade de que o ente fundado viesse a se tornar algo diverso. É dizer: o Estado brasileiro não pode ser “não democrático”, tampouco conduzido de modo “não republicano” [4]. Daí ser proibido que se altere a Constituição de modo a descaracterizar ou amesquinhar esse perfil institucional [5] [6], calcado em federação, voto popular, tripartição de poderes e liberdades públicas (artigo 60, §4º). Obviamente, isso vale tanto para o Estado quanto para aqueles que nele atuam. Tudo a evidenciar uma total aversão jurídico-política ao autoritarismo.
Num regime democrático, “todo poder emana do povo” e se exerce em nome e em proveito dele (CF, artigo 1º). Portanto, nenhuma autoridade é “dona” da coisa pública [7]. Disso resulta o princípio de responsabilidade: todos os que governam, sem exceção, prestam contas de seus atos [8]. Este mandamento nuclear do sistema cristaliza-se em diversos de seus institutos. Controle judicial das leis e dos atos administrativos; dever de reparar prejuízos causados ao erário no exercício de função pública; punições por crimes e atos de improbidade praticados contra o Estado e seus bens; além disso, mecanismos de extrema gravidade institucional, entre os quais as CPIs e o próprio impeachment: todas essas formas jurídicas são presididas pela mesma lógica — quem lida com a coisa pública responde pelo que faz. Isso vale para o presidente da República, sujeito à reprimenda política máxima do impeachment, assim como vale para o presidente da Câmara dos Deputados, que deve prestar contas de suas decisões, ainda que político-discricionárias.
O presidente da Câmara tem de se pronunciar em prazo razoável
Na hipótese de que se cuida, é da Câmara dos Deputados o poder de dar início ao impeachment. Afinal, “compete privativamente” à Casa, “por dois terços de seus membros… autorizar a instauração de processo contra o presidente da República” (CF, artigo 52, I), inclusive por crimes de responsabilidade (CF, artigos 85 e 86). Não à toa, a Lei nº 1.079/50 (artigo 22) e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (artigo 218, §8º) preveem que o destinatário da denúncia é o órgão legislativo, que, em votação nominal, delibera sobre a abertura ou não do processo. Ao presidente da casa cabe apenas receber a denúncia, verificar se ela preenche os requisitos formais e de justa causa e remetê-la à Comissão Especial. O parecer dessa, pela instauração ou não do processo, será votado pelo Plenário (RICD, artigo 218, §§2º, 5º e 8º). O artigo 218, §3º, do RICD explicita que a competência do presidente da Câmara é para proferir “despacho inicial”, correspondendo a justa causa ao exame preliminar sobre os fatos narrados e a verossimilhança das alegações.
Em linha com essas regras, o Plenário do Supremo Tribunal Federal sempre entendeu que é do órgão Câmara dos Deputados, e não de seu presidente, a competência para admitir ou inadmitir o processamento do pedido de impeachment. O que cabe ao presidente da Câmara dos Deputados é um juízo liminar (de delibação) sobre a presença daqueles requisitos mínimos. Conforme as alegações sejam consideradas verossímeis ou não, poderá dar-se andamento ao feito ou arquivá-lo. Nesta última hipótese, cabe recurso ao Plenário (RICD, artigo 218, §3º). Veja-se:
“(…) A tarefa atribuída ao presidente da Câmara importa em juízo preambular de admissibilidade a autorizar até mesmo sua rejeição por razões de inépcia ou ausência de justa causa (…) Se a denúncia for recebida pelo presidente da Câmara dos Deputados, incumbirá ao Plenário o juízo conclusivo quanto à viabilidade da denúncia” [9].
Portanto, o presidente da Câmara dos Deputados pode arquivar a denúncia por considerá-la inepta, abusiva ou leviana. Cabe, porém, recurso ao Plenário. Se cabe recurso, exige-se que alguma decisão seja proferida. Logo, não há “arbítrio”. Ao contrário do que se tem propalado, a discricionariedade do ato reside apenas e tão somente no fato de que ele poderá escolher entre duas opções: ou dar seguimento à denúncia, ou determinar seu arquivamento. Trata-se, assim, de competência semelhante àquela dos magistrados, para decidir mediante livre convencimento motivado, no caso, sobre o prosseguimento ou não da denúncia. Não existe terceira alternativa. Não é possível “não decidir”. É vedado o non liquet.
Noutros termos, embora o presidente da Câmara dos Deputados possa arquivar liminarmente a denúncia, sua discricionariedade não é absoluta. Num regime democrático, é até natural que, excepcionalmente, o alto escalão do Poder Legislativo — “sensível à conjuntura do momento” — possa tomar decisões com certa liberdade. Porém, se o ato é passível de revisão pelo Plenário, só o interesse público pode motivá-lo. Se ele for ou deixar de ser praticado por capricho, haverá desvio de finalidade. Afinal, “a regra de competência não é um cheque em branco” (Caio Tácito).
Mesmo no alto escalão legislativo, todas as autoridades devem obediência absoluta à moralidade, à impessoalidade e à eficiência (CF, artigo 37). A primeira supõe boa-fé e lealdade do parlamentar perante os cidadãos. A segunda impede que seus interesses individuais ou de grupo se sobreponham aos do Estado e da nação, sobretudo quando o ato se insere na função jurisdicional atípica do Congresso Nacional. A terceira, enfim, proíbe omissões injustificadas, especialmente quando está em risco a estabilidade das instituições, sem a qual não há paz pública, nem espaço para a tomada de medidas urgentes capazes de fazer o país voltar a crescer.
Além disso, o que se “proíbe obter diretamente, não se pode obter por meios transversos, (o) que configuraria hipótese clássica de fraude à Constituição” (STF, ADI 2.984/DF). Como a competência do presidente da Câmara existe apenas para evitar que o Plenário seja mobilizado para tratar de denúncias levianas, é somente para isso que ela deve ser invocada. Ele não pode usá-la para “blindar” o presidente da República.
Critérios para determinação do prazo para análise da denúncia
A negativa de seguimento ao pedido de impeachment é passível de recurso ao Plenário. Como isso supõe prévia decisão, o denunciante e a sociedade têm direito a um pronunciamento do presidente da Câmara, que tem o dever de prestá-lo. Na ADPF nº 378/DF e no MS nº 23.885/DF, o STF entendeu que o impeachment deve observância ao devido processo legal. Isso inclui contraditório, que, no caso, desempenha funções exoprocessuais, ligadas à prestação de contas que o Poder Legislativo deve aos seus representados quando, atipicamente, realiza julgamentos. É por isso que o parecer da Comissão Especial deve ser motivado quanto à tipicidade da conduta, o que, por coerência, também se aplica à decisão liminar do presidente da casa. Afinal, só faz sentido excluir o tema da apreciação do Plenário, o verdadeiro detentor da competência para dar início ao julgamento, se houver razões que o justifiquem, as quais, portanto, devem ser declinadas pelo presidente.
O devido processo legal significa que, aos olhos da Constituição, existe a maneira correta de se fazer as coisas, tanto na forma quanto no conteúdo do ato a ser praticado. Daí Tércio Sampaio Ferraz Jr. apontar o amálgama existente entre este preceito e os da proporcionalidade e da razoabilidade[10] [11]. Tais normas exigem que a competência seja exercida de modo coerente com sua razão de existir. Assim, seu exercício não pode frustrar a obtenção dos fins por ela almejados, nem desbordar do uso que dela se poderia razoavelmente fazer. Esse é o núcleo da regra constitucional da razoável duração do processo: a competência para decidir não pode se tornar competência para não decidir ou para decidir quando se bem entender. Não à toa, inúmeras são as situações em que, mesmo sem haver prazo explícito em lei, o STF e o STJ têm fixado prazo para que a autoridade impulsione o feito e/ou o decida [12]. Afinal, “não é lícito” à autoridade “prorrogar indefinidamente a duração de seus processos”, já que é direito do cidadão “ter seus requerimentos apreciados em tempo razoável, ex vi dos artigos 5º, LXXIII, da Constituição e 2º da Lei nº 9784” [13].
Pelo exposto, não há de se confundir a discricionariedade do presidente da Câmara para admitir ou rejeitar liminarmente a denúncia com uma espécie de arbítrio para fazer o que bem entender. Isso destoaria da finalidade do rito de impeachment, que é a responsabilidade política, e não a impunidade. Aliás, como “a denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo” (Lei nº 1.079/50), admitir que o presidente da Câmara dos Deputados protele a análise equivaleria a autorizá-lo a impedir a responsabilização presidencial, sem dar qualquer explicação à sociedade.
Em suma, ainda que não haja regras expressas na Lei do Impeachment ou no Regimento Interno da Câmara dos Deputados, algum prazo deve ser fixado. Não há precedentes específicos sobre o tema, mas, recentemente, a Corte Suprema fixou prazo para que o presidente do Senado instaure ou não CPI. Ali, considerou-se não ser razoável que o pedido de abertura da comissão fique mais de 60 dias sem decisão [14]. Embora as situações não se confundam, fato é que o precedente em questão foi proferido em contexto muito próximo do aqui examinado: acontecimentos gravíssimos sob o ângulo constitucional, em plena crise sanitária, praticados pelo presidente Jair Bolsonaro e/ou sob suas ordens, gerando a necessidade urgente de que se apurem responsabilidades. Assim, este, ou qualquer outro prazo que o STF entenda razoável, poderá ser estabelecido para que o presidente da Câmara realize o despacho inicial da denúncia. O que não é possível é que ele simplesmente não decida, ou o faça quando bem entender.
Conclusão
Pelo exposto, o presidente da Câmara dos Deputados pode, motivadamente, dar ou não seguimento às denúncias por crime de responsabilidade contra o presidente da República. Não pode, contudo, deixar de examiná-las, devendo fazê-lo em prazo razoável. O Poder Judiciário tem o dever de definir o momento a partir do qual o silêncio do presidente da Câmara dos Deputados deixa de ser legítimo.
[1] LOWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constituciónº Barcelona: Ariel, 1976, pp. 149-202.
[2] ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013, pp. 127- 220.
[3] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007, pp. 430-457.
[4] BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 143-144.
[6] SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2013, pp. 68-70).
[7] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 34-42.
[8] Idem, pp. 489-490.
[9] ADPF/MC 378, DJ 17/12/2015.
[10] FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2003, pp. 277-278
[11] Idem. Direito… Barueri, SP: Manole, 2007.
[12] RE 636553, Tribunal Pleno, DJ 26-05-2020; MS 25.859/DF, 1ª Seção, DJ 12/08/2021.
[13] STJ, MS 22.037/DF, 1ª Seção, DJ 02/03/2017.
[14] STF, MS 37760, Tribunal Pleno, DJ 09-08-2021.
Hamilton Dias de Souza é fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF), especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.
Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho é advogado tributarista integrante do escritório Dias de Souza Advogados Associados e mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).