Por Igor Mauler Santiago e Carolina Schäffer Ferreira Jorge*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Nas últimas décadas tornou-se comum a aquisição de veículos automotores com instituição de propriedade fiduciária em prol do agente financiador. Nos termos do artigo 1.361, parágrafo 1º, do Código Civil, tal propriedade deve ser registrada no Detran do Estado de domicílio do adquirente.
A Resolução 689/2017 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) disciplinou a matéria, criando o Registro Nacional de Gravames (Renagrav) como subsistema do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam) e definindo o papel de cada interveniente nesse processo de registro. A teor do diploma, o apontamento (anotação prévia e provisória do gravame no Renagrav) era feito pela instituição credora, necessariamente por meio de Empresa Credenciada no Denatran (ECD). E o registro do contrato era feito pela instituição credora junto ao Detran estadual, por meio de Empresa Registradora de Contratos (ERC) por este credenciada ou contratada.
A remuneração desses agentes era definida pelo Detran de cada Estado, na forma do artigo 33 da resolução. Nesse contexto, em 2018 o Detran do Paraná publicou edital de credenciamento de ERCs, fixando o preço de R$ 350,00 por registro, dos quais 25% (R$ 87,50) deveriam ser-lhe repassados. Face à abusividade desse valor, o Ministério Público paranaense instaurou a “Operação Taxa Alta”, apontando diversas fraudes no edital, que teria mesmo sido elaborado por uma das empresas interessadas. A excessividade do preço público foi também atestada pelo Tribunal de Contas Estadual, que ordenou a criação de comissão para elaborar novo edital prevendo preço compatível com a modicidade tarifária.
Referida comissão realizou estudos e pesquisas econômicas, concluindo que o custo do Detran/PR é de R$ 34,50 por registro e que o valor médio cobrado pelas ERCs no mercado é de R$ 109,13. Diante disso, fixou o teto R$ 146,63, autorizando as empresas a praticarem preço menor, desde que garantida a integralidade da parcela devida ao Detran.
A Resolução Contran 807/2020, que substituiu a Resolução Contran 689/2017, manteve no geral a sistemática anterior, com a diferença de que tornou facultativa, e não mais obrigatória, a intermediação das ECDs e das ERCs (artigos 5º, parágrafo 1º, e 8º). Essa foi a opção do Estado do Paraná, que atribuiu o registro dos gravames diretamente ao Detran e, por meio da Lei estadual 20.437/2020, instituiu em favor deste uma taxa de R$ 173,37 – nada menos do que 5 vezes o custo da sua atuação!
A inconstitucionalidade do tributo é nítida, tendo sido denunciada sem sucesso pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa estadual. Ofendida está a necessária correspondência entre a taxa e o custo da atuação estatal que lhe serve de fato gerador, seja no nível de cada contribuinte, seja no cotejo do dispêndio público total com a arrecadação proporcionada pelo tributo (princípio da retributividade; CF, artigo 145, inciso II). Violado está também o não confisco (CF, artigo 150, IV), valendo acrescentar que quem compra veículos com alienação fiduciária em garantia não é a parcela mais rica da população, e que não-raro aqueles são destinados ao exercício de atividades econômicas pelas empresas ou pelas pessoas físicas, sobretudo no contexto de economia de compartilhamento hoje vigente (aplicativos de transporte, de entregas, etc.). A jurisprudência do Pleno do STF na matéria é torrencial, valendo citar, entre outros: Rp. 1.077/RJ, Relator Ministro Moreira Alves, DJ 28.09.84; ADI 1.772 MC/MG, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 08.09.2000; ADI 2.551 MC-QO/MG, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 20.04.2006; ADI 6.211/AP, Relator Ministro Marco Aurélio, DJe 05.05.2020; ADI 5.374 MC-AgR/PA, Relator Ministro Roberto Barroso, DJe 08.07.2020; ADI 5.512/RJ, Relator Ministro Alexandre de Moraes, DJe 04.09.2020.
No caso em estudo sequer se apresenta a rica e tormentosa discussão sobre a dificuldade de quantificarem-se os custos das atividades estatais, a ser superada com recurso ao princípio da praticabilidade, limitado pela razoabilidade. É que, como visto, existe estudo realizado pelo próprio Estado avaliando em R$ 34,50 o dispêndio do Detran/PR com cada registro. Vale notar que o Paraná faz mais de 400 mil registros por ano, o que aponta para uma arrecadação anual de R$ 70 milhões com a nova taxa, muito superior a qualquer estimativa de despesa com a atividade em tela.
E nem se diga que a taxa seria válida por ter valor próximo ao teto anteriormente fixado pelo Estado, de R$ 146,63. Antes de tudo porque a experiência demonstra que muitas empresas não o atingiam, cobrando preços menores, como lhes era facultado. E depois porque tal teto, aplicando-se a empresas privadas, embutia carga tributária e margem de lucro — fatores naturalmente inaplicáveis ao Detran.
Essa última constatação desautoriza ainda o argumento de que a taxa não destoa dos preços vigentes em outras unidades federadas. Isso sem contar que é impróprio comparar, sem os necessários ajustes, os custos experimentados por Estados tão díspares quanto o Paraná e o Acre, que faz muito menos registros por ano e talvez não conte com os mesmos recursos tecnológicos daquele. Apenas para dar dois exemplos, São Paulo e Santa Catarina cobram meros R$ 74,81 e R$ 74,89 pelo serviço, respectivamente — preços que ademais contemplam a remuneração do Detran e das empresas privadas, que continuam a atuar nesses Estados.
Tampouco cabe afirmar que a Lei estadual 20.437/2020, ao dispensar as ERCs, teria incrementado os atos a cargo do Detran, o que justificaria o aumento de sua remuneração (de R$ 34,50 para R$ 173,37, repita-se). De fato, o Decreto estadual 7.121/2021, que a regulamentou, prevê uma postura eminentemente passiva do órgão, atribuindo às instituições financeiras a responsabilidade por inserir no sistema eletrônico deste todos os dados do contrato, “inexistindo para o Detran/PR obrigações sobre a imposição de quaisquer exigências legais aos usuários referente aos contratos de financiamento de veículos com cláusula de garantia real”, como determina o seu artigo 11.
E, para que não haja dúvidas, o dispositivo acrescenta que (i) quaisquer ônus e responsabilidades quanto aos dados dos contratos devem ser resolvidos exclusivamente pelas partes; (ii) o Detran não será responsável pela regularidade das informações originalmente enviadas; e (iii) em caso de erro, caberá ao credor refazer o procedimento de registro, devendo arcar com os valores relativos à correção do cadastro (parágrafos 1º a 3º).
Nem calha objetar, por fim, que o artigo 76-A do ADCT desvincula “de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% das receitas dos Estados e do Distrito Federal relativas a impostos, taxas e multas”, pois tal desvinculação diz respeito a uma relação de Direito Financeiro que se instaura ex post e não afasta a necessária correspondência entre o valor da taxa e o custo do serviço, aplicável à relação tributária, que lhe é lógica e cronologicamente anterior. Do contrário, as taxas seriam utilizadas como instrumento arrecadatório, voltado a custear as despesas gerais do Estado, o que não se admite. Ademais, ainda que o valor da taxa devesse sofrer o impacto financeiro da desvinculação, o caso seria de aumentá-lo em 42,85% (30% com gross up), com o que se chegaria a R$ 54,41, valor ainda muito distante dos R$ 173,37 arbitrariamente fixados pelo legislador estadual.
A matéria é objeto da ADI 6.737/PR (relatora ministra Cármen Lúcia), que ora aguarda decisão sobre o pedido de liminar.
Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).
Carolina Schäffer Ferreira Jorge é mestre em Direito Tributário e doutoranda em Processo Civil pela USP; professora do curso de especialização em Direito Tributário do IBDT; sócia de Mauler Advogados.