Por José Del Chiaro, Mario André Machado Cabral e Irene Jacomini Bonetti
Artigo publicado originalmente no Estadão
A declaração de pandemia do covid-19 pela Organização Mundial da Saúde e o aumento de casos repercutiram nas ações governamentais ao redor do mundo. Em poucas horas, o Brasil elevou o tom de alerta, a Bolsa de São Paulo sofreu duas interrupções e até o presidente da República passou a ser monitorado após o secretário nacional de Comunicação, Fábio Wajngarten, ter testado positivo para o coronavírus.
Mesmo antes da efetiva chegada do vírus ao nosso país, como não poderia deixar de ser, o mundo jurídico apresentou reflexos e a identificação de novos casos segue suscitando desafios. Do direito consumerista ao trabalhista, passando por questões relativas à proteção de dados pessoais, à privacidade e ao direito sanitário, a doença desperta medo não apenas por seus sintomas, mas pela insegurança jurídica causada.
As ações de combate à doença se alteram à medida em que sua gravidade se eleva. As relações privadas e ações governamentais tentam se adequar aos novos contextos, sendo que estas últimas tendem a serem tornar mais incisivas conforme o aumento da proporção da enfermidade. Na data de ontem, Donald Trump suspendeu os voos entre Estados Unidos e Europa com a alegada intenção de frear as transmissões.
No início de fevereiro, após conturbada negociação para regresso de 34 (trinta e quatro) brasileiros que estavam em Wuhan, epicentro de propagação do coronavírus, o governo brasileiro sancionou a Lei nº 13.979/20, estabelecendo medidas de enfrentamento da doença no território brasileiro. Após dois dias, em 9 de fevereiro, os brasileiros desembarcaram em Goiás, onde permaneceram em quarentena.
A lei, pouco divulgada até o momento, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da mutação do vírus responsável pelo surto havido em 2019, inclusive sobre a quarentena a qual se submeteram os brasileiros.
A movimentação do governo para consolidar em um instrumento medidas importantes para o combate à doença é bastante importante e merece cumprimentos. O reforço de medidas já existentes em nosso ordenamento, como a possibilidade de dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde (a dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública já é garantida pelo art. 24, IV da Lei 8666/1993), aliada a ferramentas que permitam a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas para o combate ao vírus dão ao Estado brasileiro meios importantes para o controle e tratamento da doença.
No entanto, apesar do legítimo e necessário objetivo de “proteção da coletividade”, a lei apresenta outras medidas que merecem atenção detida e acompanhamento próximo por parte da sociedade civil por apresentar diversas possibilidades de determinação de realização compulsória de algumas medidas. Em um governo com flertes abertos ao autoritarismo, a proteção aos direitos individuais e aos direitos humanos deve ser primordial e estar sempre na ordem do dia.
Alterações recentes no ordenamento jurídico brasileiro, como a revogação da Lei Delegada nº 04, que permitia ao Estado intervir no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo do povo, causam receio em relação a momentos de epidemia que podem demandar uma postura mais ativa do Estado.
Na semana passada, por exemplo, a França anunciou confisco de máscaras de proteção para garantir insumos para profissionais da saúde e pacientes. No dia seguinte, o ministro da economia do país afirmou que estabeleceria por decreto o preço do álcool gel. Nos Estados Unidos, muitos estados possuem leis que proíbem o “price gouging”, termo pejorativo utilizado para a cobrança de um alto preço para bens que se encontram, por algum motivo, em situação de alta necessidade por parte dos consumidores.
Em nosso país, o Procon Fortaleza alertou para a proibição existente no Código de Defesa do Consumidor em relação à elevação de preços sem justa causa, referindo-se ao aumento de preços de máscaras e álcool em gel. Sobre este último, o Procon-SP anunciou um levantamento para apurar práticas de preços abusivos em relação ao produto. Em nível mundial, o chamado panic buying – acumulação baseada no medo, ou seja, realização de grandes compras em meio a “desastres” – tem reduzido a oferta de produtos em supermercados e pode demandar controle estatal dos bens. No entanto, estas não são as únicas questões consumeristas que têm sofrido consequências decorrentes do coronavírus.
As companhias aéreas, agências de viagens e os consumidores têm debatido sobre as responsabilidades das partes frente aos eventuais cancelamentos de viagens em consequência do vírus. Após semanas de discussões, com opiniões diversas provenientes dos próprios Procons (São Paulo e Rio de Janeiro indicaram que a negociação entre as partes seria a melhor saída para solução das questões, ao passo que Minas Gerais e Fortaleza manifestaram-se prontamente no sentido de que os consumidores não deveriam pagar multas em caso de cancelamento), o governo publicou nota interministerial com recomendações quanto a procedimentos relacionados a viagens turísticas diante do novo coronavírus.
A nota aproxima-se das posições tomadas pelos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, indicando a negociação como melhor solução para o problema. Segundo o governo, caso o consumidor já tenha adquirido passagem aérea ou pacote de viagem e pretenda reconsiderar a contratação, deve intentar negociação junto à empresa responsável. Nestas situações, acrescenta a nota, a relação jurídica deve se pautar pelos direitos previstos na Resolução 400 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil.
A nota indica que referido processo pode ser realizado por meio do site consumidor.gov.br, plataforma online voltada à solução de conflitos monitorada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), por Procons e agências reguladoras, entre outros órgãos públicos.
Entre uma posição e outra, não se pode perder de vista a premissa da vulnerabilidade do consumidor.
Situações como a presente demandam ações rápidas e eficientes, cujos contornos jurídicos nem sempre estão prontos ou servem para satisfazer as demandas postas. Mesmo com a publicação da Lei nº 13.979/20, que abertamente classifica como faltas justificadas as decorrentes de medidas expostas na Lei, Recursos Humanos de empresas com funcionários infectados ainda não sabem ao certo como agir com os demais trabalhadores.
As soluções apresentadas até o momento também devem ser acompanhadas. Apesar de a dispensa de licitação ser um instrumento importante para a proteção da saúde pública no momento atual, ela deve seguir os princípios administrativos. Do mesmo modo, as demais restrições apresentadas pela Lei devem obediência aos direitos fundamentais.
Os desafios apresentados pelo coronavírus parecem estar longe do fim e demandam razoabilidade em suas soluções. O Brasil possui algumas vantagens: conta com universidades públicas que, por meio de suas pesquisadoras, foram capazes de decifrar a amostra do primeiro caso de infecção da covid-10 na América Latina em apenas 48 horas e com o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem apresentado, até o momento, um eficiente sistema de identificação, notificação e manejo dos casos suspeitos e confirmados. No entanto, as restrições ao aumento de gastos públicos podem comprometer essas eficiências à medida que o vírus que se propagar e mais esforços públicos forem demandados.
Do lado do Direito, as soluções jurídicas podem não ser imediatas, mas devem respeito ao ordenamento jurídico como um todo. A saúde da coletividade precisa de proteções especiais, mas precisamos estar atentos para que uma crise como a que se coloca não seja indevidamente utilizada como argumento para a relativização de direitos fundamentais.
José Del Chiaro é sócio-fundador da Advocacia José Del Chiaro, foi secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça
Mario André Machado Cabral é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutor em Direito Econômico pela USP e advogado na Advocacia José Del Chiaro
Irene Jacomini Bonetti é advogada na Advocacia José Del Chiaro