Opinião

O uso do crédito do PIS-Cofins na compra de sucata

Lei viola princípios da isonomia e da defesa do meio ambiente

16 de junho de 2020

Foto: Divulgação/ ArcelorMittal

Por Valter de Souza Lobato e Tiago Conde Teixeira*

Artigo publicado originalmente no Estadão

O Supremo Tribunal Federal julgará, no dia 19 de junho, tema de suma importância para o meio ambiente. Trata-se do RE nº 607109, de relatoria da Min. Rosa Weber, no qual se debate a constitucionalidade do art. 47 da Lei nº 11.196/2005, que vedou a utilização dos créditos de PIS e COFINS na aquisição de desperdícios, resíduos ou aparas de papel, utilizados como insumos no processo produtivo da empresa.

Essa vedação legal contraria a Constituição Federal ao violar os princípios da isonomia, da capacidade contributiva, da defesa do meio ambiente, da busca do pleno emprego e da livre concorrência.

A apuração do PIS e da COFINS, no regime não cumulativo, se dá na modalidade de base contra base, portanto, não prevalece a lógica de incidência ou não da etapa anterior; até porque  pessoas jurídicas no regime não cumulativo adquirem bens e serviços (insumos) de outras pessoas jurídicas no regime cumulativo e nem por isso deixam de fazer o crédito na sua integralidade.

Diante de tal premissa, para a realidade de mercado, quando a legislação proíbe o creditamento de PIS e COFINS nas aquisições de sucata, as indústrias que utilizam insumos extraídos diretamente da natureza são beneficiadas com a utilização do crédito de tais contribuições, enquanto as indústrias que utilizam material reciclado recebem tratamento tributário mais gravoso, sendo vedada a utilização do mesmo crédito.

E qual a importância de dar tratamento adequado às aquisições de sucatas? Ora, não é preciso dissertar muito sobre a importância do Direito se voltar para a proteção do meio ambiente, pois basta verificar os terríveis fenômenos que vivenciamos duramente nos dias atuais. O Direito, ainda que opere pelos seus próprios mecanismos, não pode se distanciar do fato social, sob pena de perder a sua legitimidade. Assim o é também com o Direito Tributário, seja pela Justiça Tributária que tem um compromisso intergeracional, ou seja, as receitas e despesas públicas devem se preocupar – por óbvio – com as presentes e futuras gerações, seja por mandamentos constitucionais, como o art. 170 do Texto Constitucional, o qual determina  que a atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com a proteção do meio ambiente e a busca do pleno emprego. Todavia, em sentido contrário aos objetivos traçados, o dispositivo ora em comento desestimula que as empresas adquiram os produtos reciclados, ou seja, que já estão fora do ciclo produtivo normal, mas que ainda poderiam ser reinseridos. Não é apenas uma questão de extrafiscalidade ou de política fiscal a ser determinada pelos Poderes Executivo ou Legislativo, é imposição constitucional a que o Sistema Tributário não pode fechar os olhos.

Em se tratando da reciclagem de papel em específico, o papel feito com material reciclado reduz em 74% os poluentes liberados no ar e em 35% os despejados na água, além de reduzir o desmatamento. Ademais, o papel produzido a partir de aparas requer 25% a 60% menos energia elétrica que a necessária para obter papel da polpa de madeira[1].

No que concerne aos benefícios econômicos e sociais, destaca-se que a reciclagem absorve mão-de-obra predominantemente pouco qualificada. Destarte, o desenvolvimento da “economia verde” possui grande potencial de impacto na erradicação da pobreza por meio da inclusão social dos mais pobres no mercado de trabalho. Nesse sentido, conforme relatório[2] da Organização Mundial Trabalho (OMT), é possível criar seis milhões de empregos através da substituição do modelo econômico atual de “extração, fabricação, uso e descarte” por uma “economia circular”, que inclui atividades como a reciclagem.

Assim, evidencia-se que o art. 47 da Lei nº 11.196/2005 confere tratamento tributário desfavorável às indústrias que utilizam materiais reciclados como insumos, colocando-as em posição de desvantagem no mercado, pelo que o referido dispositivo afronta o princípio da livre concorrência, que impõe o tratamento tributário rigorosamente igual a empresas concorrentes de um mesmo setor econômico.

Por fim, a vedação também afronta a sistemática da não cumulatividade, princípio constitucional limitador do poder de tributar. Nos termos do art. 195, § 12, da CF, a lei pode definir setores das atividades que recolherão as contribuições pelo sistema não cumulativo. Sendo assim, para os segmentos que permaneceram sob a sistemática cumulativa, as alíquotas das contribuições foram mantidas no mesmo patamar. Entretanto, os setores que passaram a se sujeitar à sistemática não cumulativa tiveram que se submeter a alíquotas maiores. Destarte, ao vedar o creditamento nas aquisições de materiais recicláveis, o art. 47 estabelece a seguinte situação: a empresa recolhe as contribuições na sistemática não cumulativa, submetendo-se a alíquotas mais altas e, ao mesmo tempo, fica impedida de se creditar de insumos essenciais para seu processo produtivo, o que não guarda correspondência com a finalidade do regime não cumulativo. E, para demonstrar o absurdo do referido dispositivo, até as empresas que estão no regime SIMPLES, cujas contribuições estão certamente incluídas na alíquota que recolhem, restam prejudicadas, pois a aquisição de sucatas de tais empresas não geram direito de crédito aos seus clientes. É dizer: em um só tempo, o referido dispositivo legal despreza os ditames constitucionais de proteção ao meio ambiente, à livre concorrência e ao tratamento diferenciado das pequenas e médias empresas.

Conclui-se, portanto, que o referido dispositivo deve ser declarado inconstitucional, de modo a permitir que o contribuinte utilize os créditos do PIS e da COFINS na aquisição de materiais reciclados. Essa decisão incentivaria a utilização de sucata como insumo pelas empresas em seu processo produtivo, o que é mais vantajoso em termos ambientais, econômicos e sociais. Assim, o STF pode se reafirmar como guardião da Constituição e protetor do meio ambiente, demonstrando que existem juízes não apenas em Berlim como também no Brasil.

Valter de Souza Lobato, professor de Direito Tributário da UFMG. Presidente da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT. Sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados

Tiago Conde Teixeira, professor do IDP. Presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/DF. Diretor da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT. Sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados

 

[1] World Wild Fund For Nature (WWF). Conheça os benefícios da coleta seletiva. Disponível em: https://www.wwf.org.br/?uNewsID=14001 >. Acesso em 30/01/2020.

 

[2] International Labour Organization (ILO). World Employment Social Outlook 2018: Greening with Jobs. 2018, p. 37. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/—publ/documents/publication/wcms_628654.pdf >. Acesso em 30/01/2020.

 

Foto: Divulgação/ ArcelorMittal

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