Opinião

O tratamento dos créditos ilíquidos na recuperação judicial

Interpretações divergentes sobre o tema trazem insegurança jurídica

31 de maio de 2022

Por Rodrigo Quadrante*

Artigo publicado originalmente na ConJur

A Lei 11.101/05, por meio do seu artigo 49 [1], determina que todos os créditos existentes, ainda que não vencidos, deverão ser incluídos no processo de recuperação judicial, ressalvadas apenas as exceções legais. [2]

Os incisos 1º [3] e 2º [4] do artigo 6º da Lei 11.101/05 são ainda mais claros ao estabelecerem que as ações que demandarem quantias ilíquidas deverão ser processadas nos respectivos juízos, sendo inscritos os créditos, no quadro-geral de credores, ao término daquelas ações.

O primeiro ponto controvertido abordado neste artigo reside na natureza jurídica dos créditos ilíquidos existentes antes do pedido de recuperação judicial, eis que existem entendimentos de que estes créditos não se submeteriam ao concurso de credores se constituídos por uma sentença proferida após a distribuição do pedido de recuperação judicial [5], ao passo que existem entendimentos de que os créditos ilíquidos constituídos após a distribuição do pedido de recuperação judicial se submeteriam ao concurso de credores, em razão do fato gerador que motivou a sua constituição ter ocorrido antes da distribuição do pedido de recuperação judicial [6].

Como se vê, estas duas interpretações se baseiam em premissas diferentes, eis que a primeira interpretação decore da existência de uma sentença como elemento constitutivo ou declaratório do crédito, sendo certo que a segunda interpretação decorre de a obrigação ter nascido antes da recuperação judicial, ainda que a sentença que lhe deu eficácia tenha sido proferida após a distribuição do pedido de recuperação judicial.

Ora, a insegurança jurídica trazida por estas duas interpretações divergentes é evidente, pois tais interpretações poderiam motivar conflitos quanto a correta análise da viabilidade econômica do devedor e do seu plano de recuperação judicial. Mas não é só. A execução de um crédito de grande valor fora dos limites do plano aprovado pelos credores também poderia motivar o descumprimento do plano de recuperação judicial, em razão da quebra das premissas econômicas do plano aprovado.

Contudo, o julgamento do Tema Repetitivo número 1.051 do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento sobre a questão, sendo objeto deste Tema Repetitivo “definir o momento em que o crédito decorrente de fato ocorrido antes do pedido de recuperação judicial deve ser considerado existente para o fim de submissão a seus efeitos, a data do fato gerador ou do trânsito em julgado da sentença que o reconhecer” [7].

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Tema Repetitivo número 1.051, concluiu que “para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador e não a data em que foi proferida a sentença judicial que o declarou, ou ainda, o constituiu”.

Portanto, o Superior Tribunal de Justiça consolidou a interpretação de que o crédito nasceria da ocorrência do fato gerador e não da data em que foi declarado ou constituído o crédito, o que encerrou eventuais discussões sobre a questão, se esclarecendo as premissas básicas para a correta análise da viabilidade financeira do devedor e do seu plano de recuperação judicial.

O segundo ponto controvertido abordado neste artigo decorre da omissão do Tema Repetitivo número 1.051 do Superior Tribunal de Justiça quanto as consequências da não inclusão do crédito concursal no quadro-geral de credores de uma recuperação judicial, o que poderia, em tese, desrespeitar a igualdade de tratamento dos credores que não tiveram o seu crédito incluído no quadro-geral de credores com aqueles que foram incluídos e participaram ativamente da recuperação judicial.

Isto porque o Superior Tribunal de Justiça, através dos julgamentos dos recursos afetados pelo Tema Repetitivo 1.051, entendeu que seria facultativa e não obrigatória a habilitação de crédito concursal do credor não incluído no quadro-geral de credores de uma recuperação judicial [8]. Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que “a habilitação não é obrigação do credor e sim uma prerrogativa que pode ou não ser exercida por ele a partir de sua própria vontade” [9].

Ademais, o Superior Tribunal de Justiça, através dos julgamentos dos recursos afetados pelo Tema Repetitivo 1.051, ainda concluiu que o credor que não tivesse o seu crédito habilitado no quadro-geral de credores, caso não quisesse fazê-lo, poderia executá-lo após o encerramento da recuperação judicial [10], não tendo, contudo, limitado o alcance desta execução a luz do plano de recuperação judicial aprovado pelos demais credores do devedor.

Ora, a interpretação que se poderia tirar dos entendimentos acima seria a possibilidade do credor que não teve o seu crédito listado no quadro-geral de credores se omitir quanto a sua habilitação e promover a penhora indiscriminada do devedor pelo valor integral do seu crédito após o encerramento da recuperação judicial. No entanto, se tal interpretação prosperasse, isto implicaria na inutilidade do processo de recuperação judicial, estando tal interpretação em total desarmonia com o artigo 59 da Lei 11.101/2005, eis que a homologação do plano de recuperação judicial implica na novação de todos os créditos do devedor [11].

O Superior Tribunal de Justiça, sensível as consequências de uma possível interpretação equivocada, houve por bem firmar o entendimento de que o direito decorrente do crédito concursal deverá ser exercido nos limites do plano de recuperação judicial aprovado, posto que a lei é peremptória ao determinar que o crédito concursal — habilitado ou não — se submete aos efeitos da recuperação judicial.

Com efeito, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ao expor o entendimento acima esclarece que “o vindouro reconhecimento da concursalidade de um crédito, seja antes, seja depois do encerramento da recuperação judicial, não torna esse crédito imune aos efeitos da recuperação judicial. Ao contrário, o reconhecimento judicial da concursalidade do crédito, independentemente do momento, torna obrigatória a sua submissão aos efeitos da recuperação judicial”, o que obriga, ainda que se possa executar o crédito após o encerramento da recuperação judicial, ao respeito a todos os limites do plano de recuperação judicial aprovado pela coletividade dos credores” [12].

Por todo o exposto, conclui-se que o crédito ilíquido no momento da distribuição da recuperação judicial será um crédito concursal, ainda que este seja reconhecido pelo Poder Judiciário posteriormente, eis que o fato gerador que lhe deu origem ocorreu antes da distribuição do pedido de recuperação judicial.

Ademais, a não inclusão no quadro-geral de credores de um crédito líquido, ou ainda, de um crédito que teve a sua liquidez reconhecida após a distribuição do processo, não permite a sua execução de forma indiscriminada e divorciada do plano aprovado após o encerramento da recuperação judicial, devendo o exercício do direito do crédito concursal respeitar os limites do plano de recuperação judicial aprovado.

[1] Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

[2] Inciso 3º e 4º do artigo 49 da Lei 11.101/2005.

[3] 1º — Terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida.

[4] É permitido pleitear, perante o administrador judicial, habilitação, exclusão ou modificação de crédito derivado da relação de trabalho, mas as ações de natureza trabalhista, inclusive as impugnações a que se refere o artigo 8º desta lei, serão processadas perante a justiça especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro geral de credores pelo valor determinado em sentença.

[5] Agravo de instrumento número 2263957-35.2015.8.26.000, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, des. Francisco Casconi.

[6] Recurso Especial número 1.634.046 – RS, Superior Tribunal de Justiça, relatora min. Nancy Andrighi e Recurso Especial número 1.843.332-RS, Superior Tribunal de Justiça, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva.

[7] Tema 1.051 do Superior Tribunal de Justiça.

[8] Recurso Especial número 1.872.740 – RS, Superior Tribunal de Justiça, rel. min. Marco Aurélio Bellize

[9] Recurso Especial número 1.851.692-RS, Superior Tribunal de Justiça, rel. min. Luis Felipe Salomão.

[10] Recurso Especial número 114.952-SP, Superior Tribunal de Justiça, rel. min. Raul Araújo e Recurso Especial número 1.872.740-RS, Superior Tribunal de Justiça, rel. min. Marco Aurélio Bellize.

[11] O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no inciso 1º do artigo 50 desta lei.

[12] Recurso Especial número 1.655.705-SP, Superior Tribunal de Justiça, rel. min. Ricardo Villas Boas Cueva.

Rodrigo Quadrante é advogado, mestre pela PUC-SP e sócio do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados Associados.

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