Por Rodrigo Faucz Pereira e Silva*
Artigo publicado originalmente no Estadão
No dia 12 de fevereiro a Assembleia dos Estados Partes do Estatuto de Roma elegeu o britânico Karim Khan para um mandato de nove anos como promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI).
Seguindo a ordem costumeira de rodízio geográfico, considerando que o primeiro promotor foi da América do Sul (o argentino Luís Moreno-Ocampo) e a promotora atual é da África (Fatou Bensouda, da Gâmbia), foi natural a escolha de um europeu. No entanto, sua candidatura foi proposta pelo Quênia, provavelmente por conta da defesa bem-sucedida de Karim Khan como advogado do vice-presidente daquele país, acusado de crimes contra a humanidade no TPI, há alguns anos. Não obstante esse fato, que, frisa-se, não minimiza o mérito do jurista — pelo contrário —, o currículo acadêmico do novo promotor é expressivo: Doutor pela Oxford University, Mestre pela King’s College de Londres, além de ser autor de diversas publicações sobre direito penal internacional. Não menos impressionante é sua experiência: atualmente é assessor especial do secretário-geral da ONU para investigar os crimes cometidos pelo Estado Islâmico no Iraque, bem como atuou como advogado (tanto para acusados quanto para vítimas) em praticamente todos os tribunais internacionais (da ex-Iugoslávia, Ruanda, Camboja, Timor-Leste, Serra Leoa, Líbano e Kosovo). Foi também presidente da International Criminal Court Bar Association.
Entretanto, dois fatos chamam a atenção. Primeiro que sua candidatura foi avalizada por dois países que sequer fazem parte do TPI – mesmo que frequentemente sejam apontados como graves violadores de normas de direito internacional e de direitos humanos –, Estados Unidos e Israel. O segundo fato é que se trata de um cidadão britânico e o próprio Reino Unido é alvo de investigação pela Promotoria do TPI por crimes de guerra cometidos no Afeganistão.
De qualquer forma, as apostas são no sentido de que, tendo em vista o seu perfil e por ter transitado tanto na acusação quanto na defesa nas principais cortes mundiais, sua atuação deverá ser marcada pela diplomacia e respeito às normas legais, o que é importante em uma época em que o TPI está sob ataque de algumas das principais potências. Assim, tem-se a expectativa de que o novo promotor evitará conflitos diretos com países que são fundamentais para a própria consecução dos objetivos do Estatuto de Roma.
O que isso pode significar para Jair Bolsonaro? As “denúncias” contra o atual mandatário brasileiro, oferecidas por algumas organizações perante a promotoria em 2019 e 2020, estão em uma grande zona cinzenta, tanto pelo aspecto material (para alcançar os critérios legais de “base razoável” para a abertura de uma investigação formal), tanto em relação ao standard necessário para suplantar o princípio da complementariedade (em que se analisam as condições do próprio Estado em investigar e processar os potenciais violadores).
Como as denúncias até aqui contra o presidente partem de interpretações sobre crimes ambientais e sobre o enfrentamento da pandemia, um pedido formal de investigação da Promotoria para o TPI dependerá diretamente não apenas da apreciação pessoal do promotor sobre estas questões, mas também de quais serão suas bandeiras durante o mandato. Pesarão também as condutas do presidente nos últimos meses que, agindo intencionalmente contra as novas diretrizes científicas, estaria colocando todo o planeta em risco.
Nas condições atuais, um pedido para realização de uma investigação formal contra Jair Bolsonaro é um risco que precisará ser sopesado. Salvo melhor juízo, o Ministério Público brasileiro tem condições de investigar e, eventualmente, processar as condutas do presidente. Colocando na balança as críticas sofridas pela atual promotora do TPI, em decorrência de absolvições em casos em que os acusados ficaram presos por anos, há reinvindicações para que a nova gestão escolha casos com evidências sólidas. Karim Khan já sinalizou que focará em casos com chances reais de condenação pelo TPI.
Aliás, sua promessa de campanha foi justamente reformar completamente a Promotoria, atualmente composta por quase 400 funcionários, para torná-la mais eficiente.
A comunidade jurídica internacional iniciou recentemente o debate sobre as eventuais implicações das ações dos governantes neste momento pandêmico que vivemos – ainda mais considerando que o vírus não reconhece fronteiras territoriais. Um tópico que está um pouco mais avançado é a constatação do cometimento de “ecocídio”, como a destruição de ecossistemas de forma generalizada ou sistemática, bem como suas consequências para os povos indígenas. Ambos os pontos, que estão no cerne das denúncias da atuação do mandatário brasileiro, avançaram internacionalmente nos últimos meses, crescendo a pressão para a necessidade de uma ação oficial efetiva dos órgãos supranacionais.
Karim Khan logo que assumir apresentará seus planos estratégicos e de atuação com vistas a deixar uma marca e enviar uma mensagem aos potenciais acusados. Dependendo de qual seja, o presidente brasileiro pode ser o próximo alvo do TPI.
*Rodrigo Faucz Pereira e Silva, advogado habilitado para atuar perante o Tribunal Penal Internacional. Membro do International Criminal Court Bar Association. Pós-doutorando em Direito (UFPR). Doutor (UFMG) e mestre (UniBrasil)