Por José Ricardo de Bastos Martins
Artigo publicado originalmente no Estadão
Diante de uma situação absolutamente imprevisível e, ao mesmo tempo, incontrolável como a que vivemos com a pandemia causada pela Covid-19, uma das questões que tem surgido com muita frequência diz respeito ao impacto dos efeitos dessa crise de saúde pública na capacidade das partes de honrarem suas obrigações contratuais. E mais: quais os efeitos jurídicos disso.
De acordo com a legislação brasileira, os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até que surjam elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção. Desta forma, um primeiro questionamento para que possamos confirmar se estamos diante desse regime de exceção deve ser: podemos considerar os impactos causados pela Covid-19 como fatores imprevisíveis e incontroláveis, tornando necessária a reavaliação daquela presunção de equilíbrio entre as partes?
Ainda que não mais se discuta (especialmente após a promulgação da Lei de Liberdade Econômica) que, nos contratos empresariais, a possibilidade de revisão contratual deva ser tratada em caráter de exceção, privilegiando-se a liberdade entre contratantes, não parece difícil sustentar que a situação vivida com a atual pandemia se enquadra naquele cenário excepcional.
Essa conclusão é reforçada pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, que reconheceu o estado de calamidade pública no país, decorrente da pandemia, bem como o disposto na Medida Provisória Nº 927, de 22 de março de 2020, que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento da crise. Foi reconhecido, expressamente, que a presente situação constitui hipótese de força maior para fins trabalhistas.
O conceito de caso fortuito e de força maior encontra-se previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro como excludente de responsabilidade contratual. É definido como um fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir.
A doutrina oscila na tentativa de estabelecer critérios claros para diferenciar os conceitos de caso fortuito e de força maior. Essa diferenciação, entretanto, não parece ser de grande utilidade, uma vez que a lei atribui efeito idêntico a ambos.
O problema, entretanto, é que, na situação que vivemos atualmente, observa-se que os efeitos da pandemia atingem – em maior ou menor grau – praticamente toda a coletividade. Trata-se, portanto, de uma situação de caso fortuito / força maior de natureza sistêmica, já que, de uma forma ou outra, praticamente qualquer parte em um contrato poderá alegar sofrer com os seus impactos, e com isso, invocar tal fenômeno como causa para justificar uma situação de inadimplemento.
Por isso, é fundamental que a análise de cada caso concreto se valha de um conjunto de princípios que levem também em consideração, por exemplo, outros aspectos como a vedação ao enriquecimento sem causa ou, ainda, a função social do contrato, ambos consagrados igualmente de forma expressa na nossa lei.
O impacto da Covid-19 deve ser analisado como excludente de responsabilidade, mas apenas e tão somente na medida necessária para restabelecer o equilíbrio original ajustado entre as partes no momento da celebração do contrato, devendo ser interpretado de maneira restritiva. Será necessário demonstrar, clara e objetivamente, de que forma – e em que medida – os efeitos sofridos com a pandemia impactaram a capacidade de cumprir determinada obrigação.
O caminho natural para a grande maioria dos casos deverá ser a negociação, dentro de critérios razoáveis, que considerem o tamanho do impacto sofrido em cada contratante, a fim de evitar vantagem indevida para qualquer dos lados, sempre tendo em mente que os efeitos do contrato, em muitos casos (ainda mais numa crise mundial como a que vivemos), também podem impactar interesses de terceiros.
Caso as partes não sejam capazes de restabelecer esse equilíbrio por meio de negociação, os mecanismos de resolução de conflitos do contrato deverão ser acionados, situação essa que, espera-se, seja a exceção e não a regra, dado o caráter global dos impactos econômicos gerados com a pandemia.
Interessante observar que, ainda que pouco usual nos contratos empresariais do dia a dia (como é o caso dos contratos de distribuição, prestação de serviços, fornecimento, etc.), a legislação brasileira prevê expressamente a possibilidade de as partes definirem, de maneira expressa, como desejam alocar os riscos no contrato. É permitido estabelecer, inclusive, se serão ou não responsáveis por inadimplementos decorrentes de um caso fortuito ou de força maior.
Assim, se houver dispositivo expresso nesse sentido, menos espaço haverá para invocar os efeitos da pandemia como excludente de responsabilidade. Mas cada caso concreto deverá ser analisado de maneira individual, considerando-se, inclusive, o seu impacto na coletividade.
Por fim, se, por um lado, na maior parte dos contratos empresariais, não se verifica uma discussão estruturada acerca dos efeitos advindos de um evento imprevisível e impossível de impedir como é o caso da presente pandemia, o mesmo não pode ser dito sobre os contratos que disciplinam as operações de fusões e aquisições.
Nesse particular cenário, é bastante comum que as partes dediquem tempo considerável para negociar – por meio de cláusulas bastante complexas – os impactos do inadimplemento decorrente de fatos imprevisíveis ou de difícil previsibilidade. Dentro desse cenário, merecem destaque as cláusulas que tratam de eventos ou mudanças relevantes que possam ocorrer entre a assinatura e o fechamento de uma operação, conhecidas como cláusulas MAC (Material Adverse Change, termo em inglês que significa efeito material adverso). O anglicismo decorre do fato de que esse conceito se desenvolveu primeiro no direito norte-americano, tendo sido, posteriormente, exportado para diversos sistemas jurídicos, como é o caso do Brasil.
Por meio dessa cláusula, as partes procuram estabelecer, de forma expressa e geralmente bastante detalhada, uma série de situações que, apesar de imprevisíveis, poderão afetar de tal forma o negócio, que ele perderia completamente o sentido para quem está contratando, caso venham a ocorrer até o momento de conclusão do negócio. Estabelecem-se, ainda, as situações que não se enquadram em tal conceito, de forma que, normalmente, há pouco espaço para dúvidas sobre as consequências do impacto advindo de eventos dessa natureza.
Assim, em contratos de M&A, onde o tema é tratado de forma exaustiva, objeto de extenso debate, as discussões acerca da responsabilidade das partes na ocorrência de eventos como a presente pandemia tendem a ser menores, especialmente com a recente promulgação da já citada Lei de Liberdade Econômica, que trouxe importante reforço ao princípio da autonomia da vontade nas relações jurídicas empresariais, inserindo de maneira expressa em nosso ordenamento princípios como o da intervenção mínima do Estado nas relações privadas e o da excepcionalidade da revisão contratual.
Pesa, ainda, em favor da manutenção dessas cláusulas o fato de que, na maioria das vezes, eventual conflito entre as partes terá a sua apreciação conduzida por um tribunal arbitral (método de resolução de conflitos predominante em contratos de M&A), onde, tradicionalmente, se identifica uma postura, por parte dos árbitros, bastante propensa a privilegiar a vontade das partes.
Porém, o momento que vivemos não encontra precedentes na história, desde que adentramos a era de uma economia verdadeiramente interdependente e globalizada. Assim, apenas com bom senso e razoabilidade poderemos minimizar os efeitos dessa crise. Nesse contexto, o papel dos profissionais especializados em negociação e mediação será de suma importância para auxiliar as empresas a reencontrar o ponto de equilíbrio nas suas relações contratuais.
José Ricardo de Bastos Martins, sócio da área de M&A e Contratos do Peixoto & Cury Advogados