Opinião

O Estado laico e a fé católica

Poder público não deve se vincular a nenhuma religião e, em consequência, aos seus símbolos

29 de maio de 2020

Por Sacha Calmon*

Artigo publicado originalmente na ConJur

O Brasil tem cruz em todo canto. A discussão sobre o tema teve início em julho de 2009, quando o Ministério Público Federal propôs ação pela laicidade do Estado. O prazo para a retirada dos símbolos religiosos é de até 120 dias após a decisão. O Estado laico é aquele que explicitamente ou historicamente se define como desvinculado de qualquer religião.

Em sessão do plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, no dia 24 de abril, foi reconhecida, por unanimidade, a repercussão geral (o que significa que vale para todos os casos atuais e futuros) em recurso do Ministério Público Federal contra uma decisão do Tribunal Regional Federal da 3º Região que negou o pedido para retirada de símbolos religiosos de repartições públicas federais no Estado de São Paulo. “O reconhecimento da repercussão geral se dá em julgamentos em que estão presentes questões constitucionais com relevância social, política, econômica ou jurídica, que transcendam os interesses subjetivos da causa”. Uma decisão do Supremo com repercussão geral uniformiza a interpretação sobre o tema jurídico posto à sua apreciação.

A ação foi proposta em São Paulo pelo MPF em julho de 2009. Na ocasião, foi pedida a retirada de todos os símbolos religiosos em locais de ampla visibilidade e de atendimento ao público em repartições públicas federais no Estado de São Paulo.

A ação argumentava que, apesar de a população brasileira ser de maioria cristã, o Brasil optou por ser um Estado laico, em que não há vinculação entre o poder público e determinada igreja ou religião, onde todos têm o direito de escolher uma crença religiosa ou optar por não ter nenhuma, conforme o artigo 5º da Constituição Federal.

A Argentina tinha na Constituição a adoção do catolicismo. Os países muçulmanos se dizem religiosos, menos, se não me engano, a Turquia ou Líbano. Nos países islâmicos a questão é muito complicada, pois Maomé pregava que a fé monoteísta em Deus (Alá) implicava um código (o corão) que conduzia a entregar o Estado ao líder religioso do lugar.

Além disso, é obrigatório, na administração pública, o atendimento aos princípios da impessoalidade, da moralidade e da imparcialidade, que estão ligados ao princípio da isonomia (que todos sejam tratados de forma igual).

Destarte, o símbolo religioso no local de atendimento público não é mero objeto de decoração, mas, sim, predisposição para uma determinada fé que o símbolo possa representar e, para o MPF, o Estado laico deve ser a regra na administração pública, não o contrário.

A Justiça Federal julgou improcedente a ação e, em 2013, o MPF recorreu ao TRF-3. No recurso, o MPF voltou a defender que o “princípio da laicidade do Estado, expressamente adotado pelo Brasil, e a liberdade religiosa impõem ao Poder Público o dever de proteger todas as manifestações religiosas, sem tomar partido de nenhuma delas”.

Em 2018, no entanto, o TRF-3 rejeitou o recurso do MPF. Para o tribunal, a presença de símbolos religiosos católicos em prédios públicos não colide com a laicidade do Estado brasileiro.

O MPF recorreu, em abril do ano passado, ao STF, pedindo que o recurso fosse admitido com repercussão geral. O MPF defende que “não merece prosperar o entendimento manifestado no acórdão recorrido no sentido de que a permanência de símbolos religiosos nos prédios públicos é uma expressão da liberdade religiosa”.

Todavia a fé exposta é a católica. Isso porque a liberdade religiosa é uma garantia pessoal, são os indivíduos que possuem essa liberdade. “Portanto, ao se defender a liberdade das autoridades em expor em local público de destaque o símbolo da religião que praticam, ocorre uma clara ofensa ao princípio da impessoalidade”, previsto na Constituição. O lógico é a inexistência de símbolos religiosos.

O TRF sequer admitiu o recurso extraordinário, obrigando o MPF a interpor um agravo, em julho do ano passado, para que o processo finalmente fosse enviado ao Supremo. Ainda não há previsão de julgamento. O relator do caso é o ministro Ricardo Lewandowski. (Processo nº 0017604-70.2009.4.03.6100 — No STF: ARE 1.249.095). Ele é católico. E polonês na descendência radicalmente católica. Veremos!

Nossa opinião é digna do Conselheiro Acácio. O Estado sendo laico não se vincula a nenhuma religião e, em consequência, aos seus símbolos. Ao meu sentir não deveria exibir a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, nem a lua nova do Islã, nem a Estrela de Davi etc. Os particulares podem. O Estado não, porque a todos representa. Parece-me uma conclusão que dimana da lógica mais elementar.

Por volta de 1822, o país era inteiramente católico, como Portugal. O elemento histórico, no caso, é essencial, como técnica interpretativa das Constituições brasileiras, incluindo a atual.

A bem dizer, o candomblé, seja ketu, seja bantu, intensamente praticado no Brasil (Bahia, Pernambuco, Maranhão), deve ser recebido tal e qual uma missa. Com respeito aos cultos dos afrodescendentes, tem-se os mesmos direitos da religião introduzida no país em 1.500 pelos portugueses colonizadores. Os índios não tinham deuses, apenas um abstrato Tupã, que variava entre tupis, tapuias, guaranis e caraíbas, para citar os principais troncos asiáticos dos nossos antepassados indígenas. Os negros, mais evoluídos, tinham religiões baseadas na metempsicose (reencarnação), bem estruturadas e já com preceitos éticos, que iam além do culto às almas dos antepassados (as bases de qualquer religião são uma explicação do real ou criacionismo, umas regras de convivência ou ética, como se diz, e uma promessa de eternidade para a alma do vivente angustiado com o seu fim…).

Sacha Calmon é advogado, coordenador da especialização em Direito Tributário da Faculdades Milton Campos, sócio fundador do escritório Sacha Calmon — Misabel Derzi Consultores e Advogados e ex-professor titular da UFMG e UFRJ.

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