Por Daniel Senna*
Artigo publicado originalmente no Estadão
No mês em que se comemora o 30º aniversário do Código de Defesa do Consumidor no Brasil (Lei 8078/90), legislação que, indubitavelmente, proporcionou significativo avanço no exercício da cidadania pelos brasileiros, aproveita-se o ensejo para “espreitar” como se trata o tema cá do outro lado do Atlântico.
É de se salientar, desde já, que, ao contrário do que ocorre no Brasil, aqui em Portugal não há um código específico a reger as relações de consumo, sendo certo, todavia, que os interesses e direitos dos consumidores portugueses estão regulados em leis esparsas (com destaque para a Lei 24/96 e demais diplomas advindos de diretivas mais recentes da União Europeia) e na própria Constituição da República, especialmente em seu artigo 60.
O artigo 60 da Constituição portuguesa enumera princípios basilares da defesa do consumidor, entre os quais, o direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à proteção da saúde, da segurança e dos seus interesses econômicos, bem como à reparação de danos.
Há ainda menção expressa e respaldo constitucional ao fato de que a publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indireta ou dolosa. E acrescenta, em seu derradeiro dizer, que as associações de consumidores e as cooperativas de consumo têm direito, nos termos da lei, ao apoio do Estado e a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores, sendo-lhes reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos.
Daí se depreende que os consumidores portugueses têm proteção constitucional no que se refere à defesa de sua qualidade de vida (em termos macros) e não só, mas também, em relação à boa qualidade dos bens e serviços à sua disposição, ao seu preço competitivo, justo e equilibrado, à proteção da saúde, à segurança, à eliminação do prejuízo e à própria formação e informação.
A Constituição portuguesa, portanto, é a base do arcabouço legislativo de proteção aos direitos dos consumidores, protegendo os cidadãos de abusos do Estado e dos demais agentes econômicos fornecedores de bens e serviços durante todo o iter, desde a produção até a distribuição final.
Já a Lei 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor), em absoluta harmonia com a Constituição portuguesa, estabelece o regime jurídico aplicável à defesa dos consumidores, e, neste diploma, se pode observar (em seus vinte e cinco artigos apenas) a concretização de oito direitos estruturantes e norteadores do sistema português de defesa do consumidor, elencados no artigo 3º. São eles: a) a qualidade dos bens e serviços; b) a proteção da saúde e da segurança física; c) a formação e a educação para o consumo; d) a informação para o consumo; e) a proteção dos interesses econômicos; f) a prevenção e a reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogêneos, coletivos ou difusos; g) a proteção jurídica por meio de uma justiça acessível e pronta; e h) a participação, por via representativa, na definição legal ou administrativa dos seus direitos e interesses.
Desde já, vale trazer a definição de consumidor à luz do dito regramento (presente no artigo 2º, nº 1): “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade econômica que vise à obtenção de benefícios”.
Também digno de nota é o fato de que as associações de consumidores ganharam relevo na lei dos consumidores lusitana (artigo 17, nº 1 ao nº 4), passando estas entidades a exercer importante papel. Tais associações têm a prerrogativa de entabular negociações de termos de ajustamento de conduta com órgãos profissionais ligados aos fornecedores (com consumidores associados ou não) e podem ter abrangência nacional, conforme a área em que atuem e o número de associados em seus quadros.
Mecanismo interessante é aquele contido no artigo 10º e seguintes, ainda do mesmo diploma legal, qual seja, o regime das ações inibitórias, que visam prevenir, corrigir ou cessar a prática de ações lesivas ao direito dos consumidores, inclusive com previsão expressa de reparação por danos patrimoniais e não patrimoniais, consoante artigo 12º.
Na mesma esteira, tem-se, no artigo 16º da LDC, a possibilidade de arguição de nulidade de cláusulas contrárias ou restritivas aos direitos dos consumidores, a ser levada a efeito através do regime das injunções.
Muito importante também é o conteúdo do artigo 14º, que prevê a possibilidade de resolução alternativa dos conflitos, envolvendo as relações de consumo, por intermédio dos centros de mediação e arbitragem espalhados por todo o país. O sucesso destes centros é estrondoso e faz perceber o amadurecimento do sistema português de proteção aos consumidores.
Por fim, deve-se registrar que a efetiva proteção aos direitos dos consumidores demanda uma consciência marcante por parte dos cidadãos e dos agentes econômicos, bem como a existência de fortes organizações representativas.
A garantia de viabilidade e manutenção de portas seguras e viáveis de acesso à Justiça e, cada vez mais, de opções de resolução alternativa de litígios, juntamente com uma crescente e plena informação e preparação educativa dos consumidores, garantirá a harmonia do sistema de defesa dos consumidores em terras de Portugal.
*Daniel Senna é mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), sócio do Fragata e Antunes Advogados e responsável pela unidade de Coimbra do escritório.