Por Francisco Antônio Fragata Júnior*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Foi no dia 9 do mês passado, com a promulgação da Lei estadual nº 17.334. Por esta regra, foi alterado o artigo 1º da Lei 13.226/2008, que instituiu o cadastro estadual para o bloqueio de recebimento de ligações de telemarketing, ou de mensagens (ligadas ou por aplicativos), junto ao Procon-SP. A alteração é de autoria do deputado Jorge Caruso.
Pela regra, os consumidores que não querem mais receber ligações de telemarketing devem se cadastrar no Procon para o bloqueio dessa estratégia de venda. Uma ideia interessante: boa para o consumidor, que não é mais incomodado, e para o fornecedor, que não precisa investir em campanhas para aqueles que não as querem receber.
Mas, com a nova redação, consideram-se telemarketing, para efeito dessa lei, os serviços de cobrança de quaisquer naturezas (sic).
A conclusão não tarda: qualquer devedor poderá se cadastrar junto ao Procon e não mais poderá ser cobrado por telefone.
A toda evidência, não se trata de assunto de telemarketing, e, sim, de cobrança, ainda que o nomen juris ali colocado seja outro.
E é sobre isso que é preciso refletir. A cobrança por telefone, se feita na forma da lei, com o fim de alcançar uma solução amigável e digna para o devedor, tem se mostrado um excelente instrumento de prevenção e composição de litígios. É bastante discreta e não incomoda o consumidor inadimplente publicamente.
Hoje em dia é uma ferramenta usada inclusive em casos que já estejam com ações judiciais em andamento. Inúmeras empresas, quando citadas em ações de consumo que questionam débitos, antes mesmo de contestá-las procuram o devedor na tentativa de uma solução, que, muitas vezes, implica algum pagamento pelo autor.
O que dizer então do portal consumidor.gov? Milhares de acordos são feitos com redução do pagamento do valor devido pelo reclamante. A maioria por contatos realizados por telefone! Será que essas ligações são de cobrança?
Serão necessárias reflexões para concluir sobre a necessidade do novo texto legal. Muitos são os escritórios que se notabilizam, por exemplo, pela eficiência em acordos, usando inúmeras ferramentas modernas de abordagem, como o contato inicial por chatbot, por exemplo.
Quanto à alteração legislativa, é de se considerar que o assunto é matéria de competência concorrente dos entes da federação, nos termos do artigo 24, V, da Constituição Federal. Mas ao estado é vedado dispor daquilo que a lei federal já o fez através do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Sobre a cobrança, o artigo 42 do CDC estabeleceu as regras gerais, ao prever — naquilo que aqui interessa — que “o consumidor inadimplente não será exposto ao ridículo, nem será exposto a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça”. Tal vedação não distingue nem impede qualquer tipo de meio de comunicação.
Não se discorrerá, aqui, a respeito do telemarketing, porque, apesar da equiparação feita pela nova lei paulista, esta teve apenas a finalidade de permitir o cadastro dos devedores e vedar o contato telefônico. Uma “gambiarra” bem ao estilo brasileiro.
Será que o ente estadual pode fazer essa equiparação e impor a restrição? Essa é a questão que os doutrinadores e julgadores terão de estudar.
Parece que tal restrição é inconstitucional, pois, no caso, o silêncio da norma geral editada pela União (o CDC) sobre a forma de comunicação deve ser entendido como uma liberdade total no uso de métodos de cobrança, desde que respeitem o artigo 42, e, evidentemente, a dignidade da pessoa, e que não pode ser restringida pelo legislador estadual ou municipal.
Não se pode deixar de mencionar, porém, o entendimento do STF a respeito desse assunto, que, aparentemente, acolhe essa alteração. Em decisão da relatoria do ministro Edson Fachin na ADPF 109, relativa à vedação do uso de amianto na construção civil, mutatis mutandis, a corte constitucional concluiu, por maioria de sua composição plena, que “as leis que proíbem o uso de amianto na construção civil — trazendo restrições maiores do que a prevista em lei federal — apenas complementam a legislação federal, protegendo a saúde da população, além de atenderem a política de desenvolvimento econômico dos municípios”.
Contudo, mesmo tendo esse viés condutor em conta, é importante observar que há um conteúdo subjetivo no julgamento do STF, que submete tal restrição, no caso, à proteção da saúde da população, além de atender a política de desenvolvimento econômico dos municípios.
Não parece haver alguma justificativa nesse caso. Não se vislumbra aqui uma proteção às relações de consumo, ou mesmo ao consumidor. Aquele que está inadimplente tem de honrar com os compromissos assumidos, a fim de manter o bom funcionamento do sistema de consumo.
O legislador, preocupado com situações específicas de devedores, como é o caso do superendividamento, tem buscado soluções de modo a proteger tais exceções.
Uma norma que veda a cobrança por telefone, claramente não se enquadra na seara de proteção pessoal de alguns devedores que até necessitam de proteção pelos dramas pessoais que a vida lhes apresentou, mas não pelo recorte dado por essa lei estadual.
Em suma, tudo indica que os tribunais irão repelir tal norma legal. E, se não o fizerem, teremos um exemplo de uma lei equivocada com resultados ferozes, pois essa é a forma de contato mais brando entre as partes.
O que se lamenta é a perda de tempo que daí decorrerá, em face de uma norma bem-intencionada, talvez, mas destituída de juridicidade.
*Francisco Antônio Fragata Júnior é especialista em Direito das Relações de Consumo e presidente do Conselho de Administração do Fragata e Antunes Advogados