Por Hamilton Dias de Souza e Luís Henrique da Costa Pires
Artigo publicado originalmente pela ConJur
O atual Código de Processo Civil consagrou uma tendência que já vinha se emoldurando nos últimos 20 anos, no sentido de prestigiar o sistema de precedentes. Regras relativas à repercussão geral (Lei nº 11.418/06) e ao recurso repetitivo (Lei nº 11.672/08) foram incorporadas ao novo código vigente em março de 2016, somando-se a criações novas, tais como o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e, em especial, às disposições dos artigos 926 (“Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”), 927 (“Os juízes e tribunais observarão” as decisões em controle concentrado, súmulas vinculantes e não-vinculantes, repetitivos e orientação dos órgãos plenários — incisos I a V) e 489, §1º, V e VI (que impõe a aplicação motivada de precedente ou, se o caso, a indicação do distinguishing para deixar de aplicá-lo, sob pena de a decisão considerar-se não motivada e, portanto, nula).
Tratam-se de medidas que, em regra, foram bem recebidas pela maioria dos operadores do Direito, até porque têm o efeito de consagrar princípios e regras condutores do ordenamento, tais como a duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII da CF/88 e artigo 4º do próprio CPC/15) e a segurança jurídica, concorrendo, em última análise, para a denominada função nomofilácica dos tribunais superiores, “destinada a aclarar e integrar o sistema normativo, propiciando-lhe uma aplicação uniforme (…)” [1].
Há um aspecto peculiar, todavia. O sistema de precedentes traz como contrapartida a restrição de acesso às cortes superiores. Antes mesmo de o novo CPC entrar em vigor, a Lei nº 13.256/16 alterou diversos de seus dispositivos cujo objetivo, de modo mais ou menos direto, foi o de dificultar o procedimento de acesso ao STJ e STF, sobretudo a reinstituição do juízo de admissibilidade pelos tribunais de origem [2] e a impossibilidade de manejo do agravo do artigo 1.042, quando a causa de inadmissibilidade de recurso especial ou extraordinário decorrer de conformidade do acórdão a entendimento firmado em regime de recurso repetitivo ou repercussão geral. Se verificada essa hipótese, e mesmo que o precedente tenha sido aplicado de modo incorreto, caberá à parte unicamente o agravo interno para o próprio tribunal de origem (artigo 1.030, §2º).
Fato é que questões relevantes de direito continuam e continuarão a ser decididas nos tribunais superiores. A função de revisão, em especial do STJ, foi mantida. É o órgão judicial a quem compete com exclusividade definir questões que envolvam normas infraconstitucionais. No entanto, não há como negar uma tendência cada vez mais visível, também no âmbito do STJ, de exercer uma função própria de uma corte de cassação, assemelhando-se aos modelos francês e italiano — o que, aliás, constituía uma das ideias originárias de criação da referida corte [3].
É indicativa dessa tendência a utilização da jurisprudência defensiva, que se presumia fosse reduzida a partir do novo código até por conta do quanto contido na exposição de motivos elaborada pela Comissão de Juristas (“… permite-se no novo CPC que os Tribunais Superiores apreciem o mérito de alguns recursos que veiculam questões relevantes, cuja solução é necessária para o aprimoramento do Direito, ainda que não estejam preenchidos requisitos de admissibilidade considerados menos importantes. Trata-se de regra afeiçoada à processualística contemporânea, que privilegia o conteúdo em detrimento da forma, em consonância com o princípio da instrumentalidade…”), mas que, na prática, manteve-se firme e até mais evidente do que sob a vigência do código anterior.
São exemplos contundentes de jurisprudência defensiva, no âmbito do STJ, o apego excessivo e muitas vezes distorcido às Súmulas nºs 7 e 182, além dos “alertas” contidos em decisões e acórdãos sobre a possibilidade de imposição de multa no caso de interposição ou reiteração de recurso. No âmbito do STF, a faceta mais visível dessa tendência está no enfrentamento do argumento de que a ofensa ao texto constitucional seria meramente reflexa, mesmo quando o recurso esteja fundamentado em princípios nele expressamente contidos, tais como o da legalidade [4] ou ampla defesa, devido processo legal e inviolabilidade da coisa julgada [5].
Outra indicação dessa tendência está na adoção do procedimento de, por ocasião do julgamento de matéria relevante, fixar-se um determinado critério jurídico e atribuir-se às instâncias de origem a sua adequação ao caso concreto. Ou, ainda, os julgados cada vez mais frequentes que apreciam recursos especiais e, ao invés de decidirem de plano o caso, determinam a devolução à corte de origem para que conclua o julgamento, estabelecendo às vezes um critério preestabelecido a ser seguido, isto é, a indicação de como o tribunal de origem deverá comportar-se ao realizar o novo julgamento.
Como exemplo, em matéria tributária, destaca-se no STJ o relevante julgado que fixou o conceito de insumo para efeito de PIS/Cofins (critérios de “essencialidade” e “relevância”), cuja aplicação ao caso concreto, em regra, incumbirá à origem, como ressalvado no próprio precedente repetitivo que deu origem à tese [6], assim como o não menos relevante julgado que tratou do prazo prescricional para redirecionamento da execução fiscal em caso de dissolução irregular do devedor original, em relação ao qual foi fixado o critério da actio nata, “cabendo às instâncias ordinárias o exame dos fatos e provas atinentes à demonstração da prática de atos concretos na direção da cobrança do crédito tributário no decurso do prazo prescricional” [7].
Diante desse quadro, não há dúvida de que a postura do advogado deve voltar-se, com ênfase especial, ao trâmite dos processos em primeira e segunda instâncias, cujo resultado terá peso relevante na solução final do litígio. Nesse contexto, assume especial importância a observação da teoria dos precedentes, própria do Direito norte-americano, mas cuja aplicabilidade ao sistema brasileiro é cada vez mais frequente, dada a importância ao precedente atribuída pela legislação processual atual.
Essa teoria impõe especial apreço aos fundamentos dos precedentes que podem ser ou não aplicáveis ao caso, bem como em que situações o precedente assume ou não o caráter de vinculante.
Quanto a essa última observação, abre-se aqui um parêntese relevante: a jurisprudência ainda não definiu, de modo preciso, sobre qual tipo de precedente e que parte dele vincula objetivamente os demais órgãos julgadores. Em regra, tem-se que a ratio decidendi não vincula, já que apenas a parte dispositiva ostentaria tal característica. Não há definição clara sobre a vinculação das teses divulgadas após o julgamento [8]. A aplicação das teorias da transcendência dos motivos determinantes ou da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade são pontos pendentes de definição na própria jurisprudência. Ainda subsiste uma perceptível resistência em sua aceitação no âmbito do STF [9].
Assim o é, por certo, porque o próprio CPC não dispensou ao tema a relevância que merecia. Curioso notar que apenas o regramento do IRDR contém referência expressa e objetiva acerca da vinculação da tese jurídica (artigo 985), enquanto o artigo 489, §1º, V, que trata das sentenças não fundamentadas, é o único dispositivo que, ao lado do IRDR (artigo 979, §2º), faz referência aos “fundamentos determinantes” de precedente ou enunciado de súmula.
Isso faz com que um sistema (de precedentes) voltado à finalidade de trazer segurança, coerência, isonomia e estabilidade às decisões seja ele próprio, de certa forma, uma fonte de incerteza. Se a função que se espera, especialmente no caso do STJ, é “explicitar à sociedade e aos juízes e tribunais inferiores a norma jurídica que deve ser utilizada para a solução dos casos, mediante o que se tutela a igualdade, a coerência da ordem jurídica e a previsibilidade” [10], ainda há um caminho a ser percorrido no que respeita à aplicação uniforme de uma verdadeira teoria de precedentes.
O quanto exposto só reafirma a importância de o advogado realizar a tarefa inicial de distinguir o precedente vinculante daquele que não o é. Depois, é preciso extrair a ratio decidendi e apontar em que medida se dá a subsunção ao caso específico. E por último, mesmo aquilo que não componha a ratio pode ter efeito relevante porque, como aponta Fredie Didier Jr., “o obiter dictum, embora não sirva como precedente, não é desprezível”, pois “pode sinalizar uma futura orientação do tribunal” [11].
De igual relevância sobressai a identificação do distinguishing, tratando-se esse tema de ponto nevrálgico vivenciado a quem litiga atualmente. Até por conta do volume desproporcional de processos no Judiciário nacional — só o Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país, julgou em 2019 mais de um milhão de processos distribuídos entre somente 360 desembargadores [12]; por sua vez, o STJ proferiu 120 mil decisões apenas durante os dois primeiros meses do regime de teletrabalho iniciado em razão da pandemia da Covid-19 [13] — a possibilidade de erro naturalmente é proporcional.
Essa possibilidade é ainda mais acentuada quando a matéria tangencia questão tratada, direta ou indiretamente, em acórdão ao qual a lei atribua força vinculante. Nesses casos, a constatação empírica revela uma tendência exacerbada de aplicação do precedente, pelas instâncias inferiores, sem um exame mais detalhado quanto a eventuais particularidades da situação fática.
Disso advém a importância de o advogado apontar de modo objetivo, claro, sintético, sem rodeios, se o fundamento do precedente, ou o próprio precedente (conclusão/parte dispositiva), aplica-se ou não ao seu caso específico, fazendo-se, se necessário, o devido distinguishing na primeira oportunidade. Compete, ainda, avaliar com precisão a modalidade processual mais adequada e a necessidade ou não de instrução probatória, como forma de minimizar o risco de o caso ser apreciado de modo padronizado e fechar-se, em definitivo, a possibilidade de futuramente levá-lo a um tribunal superior.
Conclusão
O atual CPC completou quatro anos e trouxe profundas alterações não apenas na legislação processual, mas no modo como os tribunais superiores, em especial o STJ, têm conduzido os casos. Há um claro afunilamento de instâncias. A ideia de o STJ e o STF funcionarem como tribunais de terceira e quarta instâncias é cada vez mais distante. Isso reflete no modo como o advogado deve conduzir adequadamente o processo.
[1] Cf. palavras do Exmo. Min. Teori Albino Zavascki no RESP n. 1.026.234, DJe 11/06/2008.
[2] A versão original do CPC previa a remessa dos autos aos Tribunais Superiores independentemente de juízo de admissibilidade (art. 1.030).
[3] É o que aponta o Exmo. Min. Nilson Naves ao referir-se, dentre outras, à sugestão então formulada por Alfredo Buzaid: “…a solução é criar um novo Tribunal, com função exclusiva de cassação, atribuindo-lhe a competência para julgar os casos de recursos…”. Superior Tribunal de Justiça: Antecedentes, Criação e Vocação, in Edição Comemorativa – 30 anos do STJ, p. 103. Acessível em https://ww2.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/Dout30anos/article/view/3790/3909
[4] Nessa situação, geralmente invoca-se a Súmula n. 636.
[5] Na decisão proferida no ARE n. 748.371, Min. Gilmar Mendes (DJe 01/08/2013), rejeitou-se a repercussão geral do “tema relativo à suposta violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa, dos limites da coisa julgada e do devido processo legal”.
[6] RESP n. 1.221.170, Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 24/04/2018.
[7] RESP n. 1.201.993, Min. Herman Benjamin, DJe 12/12/2019.
[8] Sobre o tema, refere-se doutrina de Teresa Arruda Alvim, Os repetitivos, as teses e o STJ, publicada no Migalhas de 05/06/2019.
[9] Rcl n. 30.715 AgR, Min. Carmen Lucia, DJe 10/04/2019; Rcl n. 4.674 AgR, Min. Roberto Barroso, DJe 07/08/2017; e Rcl n. 2.491 AgR, Min. Rosa Weber, DJe 16/12/2016.
[10] Marinoni, Luiz Guilherme, O Superior Tribunal de Justiça enquanto Corte Suprema: de Corte de Revisão para Corte de Precedentes. http://www.editoramagister.com/doutrina_24553823_O_SUPERIOR_TRIBUNAL_DE_JUSTICA_ENQUANTO_CORTE_SUPREMA_DE_CORTE_DE_REVISAO_PARA_CORTE_DE_PRECEDENTES.aspx
[11] Didier Jr., Fredie. Braga, Paulo Sarno; Oliveira, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, 4ª ed., 2009, v. 2, p. 387/388.
[12] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/01/25/tj-sp-bate-recorde-de-julgamento-de-processos-1-milhao-em-2019.htm
[13] http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Em-dois-meses-de-trabalho-remoto–STJ-ultrapassa-120-mil-decisoes-proferidas.aspx
Hamilton Dias de Souza é advogado, fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF) e especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.
Luís Henrique da Costa Pires é advogado no Dias de Souza Advogados Associados e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).