Por Otavio Calvet*
Artigo publicado originalmente no Jota
A estrutura sindical brasileira, uma das instituições mais duradouras do país, teve sua origem num modelo autoritário, centralizador e antidemocrático, conhecido como corporativismo. Este modelo, que permite o controle do conflito social trabalhista, foi paradoxalmente mantido na época da redemocratização de 1946, ao invés de se implementar a plena liberdade sindical como em todos os países democráticos, reafirmado no período do regime militar em 1964, que era afeto ao controle estatal do movimento sindical, e preservado pela Constituição de 1988, pois o modelo de monopólio sindical servia aos interesses daqueles que os controlavam, os dirigentes sindicais, muitos posteriormente migrados para o cenário político partidário.
Tal modelo sempre serviu para reafirmação de poder, seja pelo Estado, nos períodos de intervenção, seja pelos próprios agentes controladores destas entidades, tentando-se em 2017, com a Lei 13.467 (“reforma trabalhista”), implodir um dos pilares da sustentação do antigo sistema que ainda guarda sua face autoritária, exigindo que cada sindicato seja responsável pelo seu sustento com o fim da contribuição compulsória, gerando a necessidade de real representatividade e, ainda, concedendo maior poder de negociação aos sindicatos, ao regulamentar quais direitos trabalhistas podem ser objeto de flexibilização e quais são infensos a qualquer tipo de modificação, nos termos dos art. 611-A e 611-B da CLT, ao mesmo tempo em que impediu a intromissão do Estado, através do Poder Judiciário, nas escolhas legítimas e válidas feitas pelos próprios atores sociais, criando o Princípio da Intervenção Mínima (art. 8º, §3º da CLT).
A estrutura sindical até a Reforma Trabalhista mantinha de fato um conjunto coerente, típico de uma visão autoritária e retroalimentadora de poder, com o registro sindical, unicidade e contribuições compulsórias, funcionando de forma harmônica para quem já era detentor da personalidade sindical, não permitindo que outros atores pudessem se organizar diante do monopólio da representação. A mudança promovida pela Reforma, a única possível por lei ordinária, já que o registro e a unicidade possuem previsão Constitucional, foi um esforço para darmos um amplo passo na direção da desejada liberdade sindical. Retirando-se a fonte obrigatória de manutenção financeira dos sindicatos, verdadeiro tributo que contraria a Convenção 87 da OIT, norma internacional que prega a ampla liberdade sindical e da qual o Brasil não consegue ser signatária justamente por estes resquícios autoritários no meio sindical, pode-se separar as entidades que, de fato – e não apenas de direito –, possuem representatividade, ou seja, aquelas cujos integrantes desejam livremente contribuir para manutenção da representação coletiva.
Espera-se que, agora, venham as demais reformas sindicais, que em tese deveriam ser fomentadas pelos próprios sindicatos, já que é unânime o meio trabalhista em reconhecer a necessidade da implementação da liberdade sindical plena em nosso pais, adotando-se a pluralidade sindical.
Romper, portanto, com o principal elemento de manutenção de uma estrutura autoritária, monopolista, antidemocrática e contrária à liberdade sindical, a partir do Poder legítimo para tal, o Congresso Nacional, com os representantes eleitos pela sociedade, sem dúvida foi uma das melhores alterações que o movimento sindical poderia esperar, ao menos o autêntico, o que deseja trilhar o caminho preconizado pela Organização Internacional do Trabalho.
A alteração do texto legal e, espera-se, do constitucional, proporcionará o caminho para a efetivação da liberdade sindical, sendo ingênuo pensar que a manutenção da estrutura tradicional levaria ao efeito contrário, já que a história mostrou que, independentemente do tipo de Governo (autoritário ou democrático), os interesses próprios do sindicalismo mantiveram o modelo que lhe era favorável, alijando a possibilidade da real liberdade.
A pandemia do novo coronavírus mostrou, inclusive, parte da falência do sistema tradicional, pois a via da negociação individual para salvaguarda de empregos e renda dos trabalhadores salvou mais de 15 milhões de trabalhadores brasileiros em tempo recorde, enquanto o sindicalismo tradicional apenas tentava no Poder Judiciário manter sua prerrogativa de negociação coletiva (que aliás jamais foi impedida pela MP 936 e pela Lei 14.020/2020, textos que criaram o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda). Entender que a negociação coletiva é a única forma de cooperação entre trabalhador e tomador dos serviços é fazer pouco da autonomia da vontade individual. Ambas, vontade individual e coletiva, devem caminhar em conjunto.
A esperada reforma sindical urge, há vontade política na atual conjuntura, basta os detentores do monopólio quererem o diálogo social, aceitando os rumos que o Brasil precisa adotar a favor da democracia e da liberdade plena, sempre com responsabilidade. Não se pode deixar o diálogo se transformar num monólogo de quem detém o monopólio, pois assim jamais modificaremos o cerne de uma estrutura retrógrada e que dificulta o desenvolvimento do Direito do Trabalho e da própria economia.
O procedimento para chegarmos aos parâmetros desta reforma, portanto, deve ser impulsionado por atores que não estejam defendendo seus próprios interesses, como grupos de notáveis e estudiosos que, conhecedores da história do país e do mundo, já sabem os caminhos a serem traçados para finalmente o Brasil se orgulhar de estar alinhado com a mais importante diretriz da Organização Internacional do Trabalho, a já mencionada Convenção 87 sobre Liberdade Sindical, quando finalmente teremos uma estrutura adequada à democracia que desejamos e que vivemos.
*Otavio Calvet é juiz do trabalho e presidente da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT)