Opinião

Nego do Borel, Prevent Senior e o gozo do punitivismo social

Já deveríamos ter aprendido a aguardar a reconstrução histórica dos acontecidos, dentro dos limites legais

30 de setembro de 2021

Por Daniel Gerber*

Artigo publicado originalmente no Estadão

Como bem pontuou Mônica Rodrigues[1]quer paremos no meio da rua e nos detenhamos a ouvir os ruídos que partem de todos os lados, em todas as direções numa cidade do ocidente, quer mergulhemos solitariamente um pouquinho abaixo de nossa própria epiderme, escutaremos ruídos de mesma ordem: são produzidos, na atualidade, pelo imperativo do gozo[2]Os horrores que nos podem chegar ao exterior e os conflitos íntimos revelam uma inquietante proximidade.

O mês de setembro de 2021 nos forneceu dois exemplos especialmente produtivos para a verificação do quão correta estava a afirmativa de que os horrores externos, que tanto queremos punir de forma imediata, exemplar e com requintes de crueldade revelam-se assustadoramente reflexos de nossa intimidade.

O primeiro deles diz respeito à expulsão de uma figura midiática que se autodenomina “Nego do Borel”, de um programa televisivo chamado “A Fazenda”. O programa nada mais é do que uma das centenas de variações do Big Brother Orwelliano que inundaram nosso cotidiano por meio das emissoras de televisão.

Ali, onde a diversão é, literalmente, cuidar da vida alheia, referido cidadão foi acusado pelos meios de imprensa de estuprar uma outra participante que, no momento do ato, estaria sem condições de consentir com a relação sexual ante o absurdo estado de embriaguez na qual se encontrava.

O tema, por certo, é espinhoso, principalmente diante da legítima luta feminina contra toda forma de assédio sexual (expressão utilizada neste texto em sentido lato) que, historicamente, permeou a relação entre os gêneros. No entanto, e justamente pela sua ínsita complexidade que não pode ser simplesmente engavetado em um saber pré-constituído, formado por explosões midiáticas típicas de uma sociedade do espetáculo[3], e que valha, dali em diante, para toda e qualquer situação que se apresentar inserida em tal espaço de conflito.

A dificuldade inicial na análise de casos como este surge, justamente, da proximidade entre o que condenamos no Outro e na nossa própria individualidade. Quantos e quantas de nós, em diversas fases da vida, não tomou coragem para um ato sexual após algumas doses? E quem poderá dizer, com certeza matemática, até onde a consciência e sua consequente determinação de vontade não restou alterada, significativamente, para que tal ato deixasse de ser uma legítima determinação de nossa volúpia? Como dizem por aí, o julgamento que faço do próximo diz muito mais de mim mesmo do que daquele que foi julgado.

Um segundo elemento de alta complexidade dogmática que invalida qualquer conclusão pret a porter surge na visão que as categorias do Direito Penal têm quanto ao uso de substâncias que alteram a capacidade cognitiva ou volitiva do agente.

Em tal linha, todo estudante medíocre de Direito lembra do lema “actio libera in causa”, que, simplificado ao máximo e amputado de todas as circunstâncias que envolvem o saber científico é vulgarmente traduzido pela compreensão de que “estar bêbado não serve como desculpa para o ato praticado”.

O conceito, entretanto, é muito mais amplo e detalhado. O que visa proibir é a conduta daquele que se intoxica para a dolosa prática do ato ilícito posterior, e não daquele que, após usar a substância entorpecente sem nenhuma “segunda intenção”, pratica o ato conflituoso por sua condição mental já deteriorada.

A correta compreensão de tal conceito, por sua vez, gera um outro desdobramento: se no momento de uso da substância o resultado danoso era previsível, a resposta penal será uma. Se, entretanto, era imprevisível, a resposta será diametralmente oposta.

No caso do Nego do Borel, esta já é uma questão importante que sequer se ventilou na medida em que não interessa à “opinião pública”: ele seria responsável por atos adotados sob efeito de tóxicos (no caso, bebida alcóolica) se, quando da ingestão de tais substâncias, havia previsibilidade de resultado danoso para terceiros?

Se a resposta a tal questionamento for positiva, ele poderá responder pela ação adotada. Entretanto, é justamente dessa resposta que o problema passa de “complexo” para “insolúvel”, eis que a pretensa vítima também havia bebido.

Ora, se para o acusado se impõe responsabilidade sobre seus atos enquanto bêbado, por qual motivo a vítima também não seria responsável pelos seus, na medida em que o encontro sexual era previsível? E, em sendo responsável, onde estaria o delito? O que tornaria a mulher uma “vítima” em tal panorama volitivo?

Abordando a questão pelo lado inverso: se o encontro sexual não era previsível quando da ingestão de substância alcoólica e a vítima, quando do ato em si não era responsável por seu comportamento na medida em que estava com a consciência alterada, por qual motivo o acusado, também sob alteração do tóxico – ingerido sem previsibilidade do resultado danoso -, seria responsável por seus atos?

Vamos além: se houve suspeita real de ocorrência de crime, e se o exame de corpo de delito é imprescindível em qualquer fato que deixe vestígios, como explicar que a vítima permaneceu no programa sem ser analisada e, mais, com a emissora proibindo o acesso de policiais ao local (conforme notícias de mídia não contestadas pelas autoridades)?

Como facilmente se percebe, o que houve no caso, independentemente do que venha a se desvelar em procedimento investigatório, foi uma condenação antecipada do cidadão em virtude do poderoso papel que a figura da vítima representa no processo de criminalização concreta de uma conduta, situação esta devidamente explicitada pelas teorias criminológicas do interacionsimo e labelling approach. No caso, um negro – e que, aparentemente, já usufruía de relativa má fama social por histórico de violência doméstica – foi colocado como agressor sexual de uma mulher. Mesmo os poucos experientes na arte do julgar o próximo sabem intuitivamente que os ingredientes acima, quando se misturam, inauguram uma guerra de narrativas que em nada se confunde ou contribui com o conceito de verdade.

O segundo exemplo que merece abordagem é o caso da Prevent Senior na CPI da Covid. Referida instituição defendeu sempre o tratamento precoce da doença, motivo pelo qual restou ideologicamente alinhada com o propagado pelo Presidente Jair Bolsonaro.

A partir daí, em um cenário de disputa política bastante adverso ao próprio conceito de cidadania, com milhões de brasileiros defendendo tal pensamento e outros milhões classificando-o como genocida, e com os partidos políticos – sem exceção – se valendo da pandemia para fins eleitorais, a clínica virou alvo da investigação parlamentar e, por meio de um determinado depoimento, transformou-se em um “palco dos horrores”, cujos procedimentos foram comparados aos adotados pelo próprio Josef Mengele na Alemanha nazista.

O problema, entretanto, também traduz incrível proximidade entre suas nuances e nosso desejo represado de gozo. Quantos mil não perderam familiares e querem botar para fora do peito a raiva que surge da impotência humana na vã tentativa de se prevenir de todos os males intrínsecos à existência? Quantos não buscam um culpado para, nele, jogarem todas as frustrações decorrentes do próprio ato de viver? E, no front de defesa da clínica, quantos outros não perseguem a própria absolvição, dado terem perdido entes queridos por acreditarem no tratamento precoce e, hoje, serem tidos como ignorantes ou corresponsáveis pela tragédia? Enfim, gozo de ambas as facções, pois tudo o que se busca em momentos de crise existencial é a imolação de alguém que represente a figura do mal, confirme nossa ideologia e nos absolva de nossos próprios pecados.

Os debates sobre o Nego do Borel e da Prevent Senior refletem também o ensinamento de Alessandro Baratta[4], para quem “se algumas situações são definidas como reais, elas são reais nas suas consequências”. Em ambos, independentemente de decisões judiciais que porventura sejam proferidas, já existe uma sentença social condenatória com os -altíssimos – custos inerentes de tal posição.

Conclui-se, portanto, que exatamente pelas consequências concretas geradas pelo imaginário social que já deveríamos ter aprendido – com casos como o da Escola Base de São Paulo, por exemplo – a controlarmos nosso gozo e aguardarmos que a reconstrução histórica do acontecido ocorra dentro dos limites legais, e não por emissoras de televisão e redes sociais. Hoje, eles. Amanhã, todos nós.

 

[1] RODRIGUES, Mônica Vasconcellos Delfino: Considerações sobre o lugar do gozo na atualidade: dessimbolização, violência, inveja e ressentimento: Revista de Estudos Criminais nº 27, ed. Nota Dez, p. 139.

[2] Gozo traduz excesso, aquilo que é intolerável ao psiquismo e que pode ser experimentado também por meio do usufruto do corpo do outro.

[3] Termo cunhado por DEBORD, Guy, em 1967. Também vale a denominação “sociedade midiocre” ou “hiper-espetáculo”.

[4] Barata, Alessandro: Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal. Ed. Freitas Bastos, p. 93.

*Daniel Gerber é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico e mestre em Ciências Criminais, sócio-fundador de Daniel Gerber Advogados 

 

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