Por Nelson Wilians*
Artigo publicado originalmente na Folha
“A fera nunca pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente, tão esteticamente cruel” (Dostoiévski). Formamos uma sociedade de brutalidade espetaculosa, capaz de gerar violência como normalidade, sem corar de vergonha, e de produzir estupidez atroz em escala como a do Monark, que defendeu a legalização de um partido nazista no Brasil porque, se alguém é “antijudeu, ele tem o direito de ser antijudeu”.
Claro, mal comparando, da mesma forma que um traficante pode criar o partido dos traficantes porque ele “tem direito a traficar”. Não! Isso é crime.
A defesa do nazismo revela um conteúdo ideológico que viola a igualdade (art. 5º, caput, CF), afronta a dignidade e a preponderância dos direitos humanos (artigos 1º, inciso III, e 4º, inciso VIII, da CF). Ou seja, além de atender à democracia e ao respeito aos direitos fundamentais, por consequência, a Constituição Federal proíbe a existência de grupos partidários contrários a esses valores.
Diante de nossa imensa idiotice, às vezes penso que o que nos diferencia realmente dos animais é a busca inecessária de sangue, enquanto na natureza trata-se de uma questão de sobrevivência e autodefesa.
O que as pessoas queriam ver, por exemplo, na “luta” de um ex-campeão de boxe contra um youtuber, recentemente? Respondo: dois “popstars” se estapeando até sangrar.
A necessidade de sangue nos transformou em vampiros sociais. Os mesmos que se indignam com a violência têm uma atração mórbida por ela. Vide os programas espetaculosamente policialescos e sua grande audiência sedenta por carnificina. E as cruentas lutas do MMA e UFC, vistas como esporte? “A crueldade é um dos prazeres mais antigos da humanidade” (Friedrich Nietzsche).
Por todos os ângulos que se olhe, a única coisa que vemos é a bestialidade humana, quase nada diferente do que se via no Coliseu romano. Algumas regras mudaram, os muros que cercavam a arena caíram, mas a essência é a mesma: pancada e sangue enquanto se come pipoca.
Continuamos no Coliseu!
E isso me leva para a questão do preconceito racial. Se, por exemplo, apenas o nome de todas as pessoas negras massacradas pelo racismo na história fosse colocado em uma lista por ordem alfabética neutra, e não cronológica, ficaríamos estarrecidos com a semelhança dos fatos e a brutalidade geracional contínua, a cada história que tivéssemos curiosidade de conhecer. Lá fora ou aqui, ontem ou hoje, uma das formas mais estúpidas de acionar o botão da violência ainda é, muitas vezes, a cor da pele e o preconceito.
Continuando em nossa lista alfabética, em algum momento chegaríamos a dois casos recentes ocorridos no Rio de Janeiro, muito além dos atrativos de pousar no Santos Dumont e seguir pelo aterro do Flamengo. O brutal assassinato do congolês Moïse Kabagambe, na Barra da Tijuca, e de Durval Teófilo Filho, morto em seu próprio condomínio, pelo vizinho, o sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra.
No caso de Moïse, uma testemunha contou que viu as agressões quando foi comprar um refrigerante no quiosque Tropicália. Ela disse que buscou auxílio com dois guardas municipais, que não foram ajudar. Não é difícil tentar imaginar o porquê. Quanto a Teófilo Filho, o sargento disse que achou que fosse uma tentativa de assalto. E disparou várias vezes contra ele.
Estudos mostram que erros de identificação, especialmente aqueles que são interraciais, compõem uma grande porcentagem de convicções errôneas.
A evolução nos tornou mais pacíficos e, paradoxalmente, mais propensos à violência (com certeza há uma explicação antropológica para essa questão).
Mas a nossa Constituição é clara ao dispor expressamente que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão” nos termos do art. 5º, XLII.
Por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO 26, o Supremo Tribunal Federal reafirmou seu compromisso com os ditames constitucionais e seus primados, ao criminalizar a homofobia e estabelecer que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis.
Mas há uma grande resistência social em aceitar que todos devem ser respeitados igualitariamente e um desejo ferino de propagação da violência, implícita ou explícita.
Porém, está tudo na lei, que, em outras palavras, reafirma que os homens nascem iguais. Mas, como pontuou o impagável Barão de Itararé, no dia seguinte já são diferentes.
Com isso, segue o espetáculo sanguinolento no Coliseu, de onde muitos ainda não saíram, infelizmente.
*Nelson Wilians é empreendedor e advogado
Foto: Emerson Lima