Opinião

Mulher trans merece proteção da Lei Maria da Penha

Questão determinante para a aplicação da Lei é a identidade de gênero

8 de abril de 2022

Por Renato de Mello Almada*

Artigo publicado originalmente no Estadão

Importante precedente foi aberto em recente julgamento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao se posicionar a respeito da aplicação das normas de proteção da Lei Maria da Penha em relação às mulheres transexuais.

O caso foi julgado pela Sexta Turma do STJ, tendo por Relator o ministro Rogério Schietti Cruz, que primorosamente analisou a matéria. Para sintetizar o caso e a boa aplicação do direito, vale transcrever a ementa da decisão:

RECURSO ESPECIAL. MULHER TRANS. VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. APLICAÇÃO DA LEI N.11.340/2006, LEI MARIA DA PENHA. CRITÉRIO EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICO. AFASTAMENTO. DISTINÇÃO ENTRE SEXO E GÊNERO. IDENTIDADE. VIOLÊNCIA NO AMBIENTE DOMÉSTICO. RELAÇÃO DE PODER E MODUS OPERANDI. ALCANCE TELEOLÓGICO DA LEI. MEDIDAS PROTETIVAS. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO.

1. A aplicação da Lei Maria da Penha não reclama considerações sobre a motivação da conduta do agressor, mas tão somente que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida.

2. É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha.

3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas.

4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher.

5. A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que, no meu entender, o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é.

6. Na espécie, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei n. 11.340/2006, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente – especializado – para processar e julgar a ação penal.

7. As condutas descritas nos autos são tipicamente influenciadas pela relação patriarcal e misógina que o pai estabeleceu com a filha. O modus operandi das agressões – segurar pelos pulsos, causando lesões visíveis, arremessar diversas vezes contra a parede, tentar agredir com pedaço de pau e perseguir a vítima – são elementos próprios da estrutura de violência contra pessoas do sexo feminino. Isso significa que o modo de agir do agr10essor revela o caráter especialíssimo do delito e a necessidade de imposição de medidas protetivas.

8. Recurso especial provido, a fim de reconhecer a violação do art. 5º da Lei n. 11.343/2006 e cassar o acórdão de origem para determinar a imposição das medidas protetivas requeridas pela vítima L. E. S. F. contra o ora recorrido.

Pouco ou nada há para se acrescentar ao robusto voto do Ministro Relator.

Na atualidade não há mais espaço para se deixar de reconhecer a identidade de gênero como caracterizadora da identidade feminina ou masculina para reconhecimento de direitos. Como bem salientado no voto em comento, “mulher trans mulher é”.

Assim, sendo a mulher vítima de violência doméstica, independentemente se o conceito a ser utilizado seja biológico ou por identidade de gênero, merece ela a proteção da Lei Maria da Penha.

Cabe salientar que alguns Tribunais estaduais, incluído o de São Paulo, já vinham conferindo à mulher transexual a proteção da Lei Maria da Penha, em que pesem alguns julgados contrários.

Contudo, a decisão unânime proferida no julgamento realizado pelo STJ (REsp 1977124/SP), constitui precedente que pode – e deve – ser aplicado nas demais causas em tramitação no país e que guardam similaridade com a situação posta no caso analisado. Daí, a máxima importância que deve ser dada a esse julgamento, cuja riqueza de fundamentação contida não só no Acórdão, mas também nas Razões apresentadas pelo Ministério Público, serve de balizamento para o enfrentamento futuro do tema.

Em resumo, a própria Lei Maria da Penha, em seu artigo 5º estatui que: Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Evidente, pois, que a questão determinante para a aplicação da Lei é a identidade de gênero e não somente a definição biológica de mulher. A proteção deve ser dada a todas que como mulher se definem. Essa, respeitadas as opiniões contrárias, é a conclusão que deve ser dada para aplicação dessa norma protetiva.

*Renato de Mello Almada, especialista em Direito de Família, é sócio de Chiarottino e Nicoletti Advogados

 

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