Por Ademir Antonio Pereira Jr. e Yan Villela Vieira*
Artigo publicado originalmente na ConJur
No último dia 6, a Presidência da República publicou a Medida Provisória nº 1.068/2021, que alterava significativamente o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) para, entre outras inovações, prever que redes sociais somente poderiam excluir, bloquear ou suspender usuários e conteúdos caso se enquadrassem em uma das hipóteses definidas em lista exaustiva pela MP. Notoriamente, a MP não previa o compartilhamento de informações falsas e discurso de ódio em geral como hipóteses de “justa causa” para a remoção de usuários ou conteúdo pelas redes sociais. Caso quisessem excluir esse tipo de publicações de suas plataformas, as redes sociais deveriam solicitar sua remoção judicialmente. A MP acabou, assim, apelidada de MP das Fake News e duramente criticada por usar uma suposta defesa da liberdade de expressão para impedir o combate à desinformação nas redes sociais.
Questionada por sete ações diretas de inconstitucionalidade e tendo despertado críticas imediatas de especialistas, sociedade civil e lideranças do Congresso, a MP teve vida curta. Cerca de uma semana após sua publicação, sua eficácia foi afastada por decisões quase simultâneas do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e da ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber. Ao rejeitar a MP, tanto o presidente do Senado quanto a ministra do STF destacaram que se trataria de norma inconstitucional por disciplinar temas vedados a medidas provisórias.
O debate público sobre temas como a liberdade de expressão e os limites constitucionais das medidas provisórias é fundamental. No entanto, um aspecto menos privilegiado na discussão que se seguiu à MP 1068 é o de sua inconstitucionalidade por limitar a livre iniciativa e os princípios constitucionais da livre concorrência e da liberdade contratual. Para tratar desses temas, é necessário compreender o modelo de negócio das redes sociais.
Empresas conhecidas como “redes sociais” ofertam ambientes virtuais onde usuários podem compartilhar conteúdo e interagir entre si. Em geral, a monetização desses produtos é realizada com a disponibilização de anúncios a seus usuários. Tratam-se, portanto, de agentes econômicos que operam em mercados de dois lados: precisam atrair usuários que se interessem em compartilhar e interagir com o conteúdo disponível na rede, ao mesmo tempo em que precisam atrair anunciantes interessados em se comunicar com os usuários da rede. Para obter sucesso, esses agentes econômicos precisam, então, ser capazes de oferecer um design de produto que atraia tanto usuários quanto anunciantes simultaneamente. Caso o produto afaste usuários insatisfeitos com seu design, anunciantes rapidamente abandonarão a rede, precipitando o fracasso do negócio. E como redes concorrentes estão literalmente a um clique de distância, não faltam exemplos de redes sociais que viveram um período de grande relevância para virtualmente desaparecerem, com seus usuários preferindo utilizar outras redes com escolhas de design de produto distintas.
O design do produto oferecido pelas redes sociais não é apenas a paleta de cores utilizada em seus websites e aplicativos, o formato de acesso e troca de conteúdo ou a mídia principal veiculada (vídeo, texto, imagem etc.). Tão importantes quanto esses elementos são os termos de uso e diretrizes de comunidade aos quais os usuários devem aderir. Esses instrumentos de natureza contratual dispõem sobre elementos fundamentais para a interação entre usuários e o compartilhamento de conteúdo nas redes, incluindo desde seu perfil — como a idade mínima para acessar a rede, por exemplo — até vedações a determinados conteúdos, seja por seu formato ou por violarem determinadas regras pré-estabelecidas e aceitas pelos usuários.
Ao criar termos de uso e diretrizes de comunidade, portanto, redes sociais estabelecem as “regras do jogo” e buscam diferenciar seus produtos para atrair usuários e anunciantes, assim como qualquer empresa procura melhorar/diferenciar seu produto para aumentar suas vendas. Para esses agentes econômicos, criar designs que tornem seus produtos melhores e mais atraentes (inclusive quanto ao tipo de conteúdo compartilhado) é um elemento central de diferenciação, aspecto-chave para a competição entre plataformas. Se as regras criadas por uma rede social resultarem, por exemplo, em ambientes hostis ou marcados por discriminação de indivíduos, existe um risco importante de que usuários e anunciantes migrem para plataformas concorrentes. Nesse sentido, a capacidade de criar regras que definam as características de design do produto a ser ofertado a usuários e anunciantes é um elemento central da livre iniciativa e da livre concorrência para redes sociais.
Ao estabelecer uma lista taxativa de situações que configuram “justa causa” para a remoção de usuários e conteúdo pelas redes sociais, a MP 1068 interfere diretamente no design dos produtos criados e ofertados pelas redes sociais, limitando não apenas sua capacidade de diferenciação (reduzindo, com isso, elemento chave do processo competitivo) como a opção por escolhas de design legítimas e que parecem acompanhar a preferência de grande parte dos usuários. A interferência sobre esse aspecto substitui, assim, o exercício da livre iniciativa, a competição entre diferentes designs e a inovação por uma decisão centralizada pelo Estado.
A disciplina constitucional da ordem econômica reflete uma composição histórica entre diversos interesses e ideologias para a formação do texto constitucional, cuja orientação aponta para gradual abstenção estatal em prol da prevalência de relações privadas pautadas pelas regras do livre mercado. Intervenções sobre aspectos do design de produtos em uma sociedade que adota a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica e valoriza a livre concorrência e a liberdade contratual devem, portanto, ser excepcionais. Nesse sentido, em uma economia de mercado, a regulação do design de produtos ofertados por agentes privados deve partir da necessidade de lidar com falhas de mercado.
A intervenção estatal sobre a moderação de conteúdo por redes sociais, no entanto, não parece justificável por falhas de mercado tradicionalmente consideradas — poder de mercado, externalidades e assimetria informacional.
Redes sociais operam em mercados altamente competitivos e dinâmicos, com uma profusão de agentes e modelos de negócio. Nesse sentido, usuários insatisfeitos podem facilmente migrar para concorrentes, levando consigo anunciantes que monetizam as redes. Ainda, as regras de design sobre conteúdo são frequentemente adotadas mesmo por redes sociais com relativamente pequeno número de usuários (e que claramente não detêm poder de mercado). Portanto, a MP não disciplina um problema derivado de eventual poder de mercado ou que tem sido agravado por ele.
Também não há indício de que assimetria informacional entre usuários e rede social tenha produzido problemas que exigem intervenção neste caso — os termos de uso e diretrizes aplicáveis são, em geral, facilmente acessíveis e compreensíveis, e as decisões tomadas pelas empresas são fundamentadas na violação a regras específicas. Além disso, usuários prolíficos na produção de conteúdo nas redes sociais são cada vez mais sofisticados em termos de compreensão das políticas da rede, inclusive para otimização de visualizações.
Finalmente, não há dúvida de que redes sociais são capazes de gerar externalidades positivas e negativas relevantes. Externalidades são efeitos econômicos que extrapolam a relação privada especificamente considerada e irradiam sobre a sociedade. Por exemplo, uma rede social pode beneficiar um usuário que promove suas ideias por meio da rede, e ao mesmo tempo beneficiar a sociedade como um todo ao gerar um foro de troca de informações e interação descentralizada (externalidade positiva). De outro lado, pode também viabilizar a proliferação de discursos de ódio, que têm efeitos ruinosos não apenas sobre determinados indivíduos afetados diretamente, mas sobre a sociedade como um todo (externalidade negativa). Contudo, não há qualquer evidência de que as escolhas de design das redes sociais estejam privilegiando atividades que geram externalidades negativas e limitando externalidade positivas.
Ao contrário, as principais redes sociais, reagindo às forças de mercado e demanda de seus usuários, buscam um balanço entre externalidades positivas e negativas, criando políticas de moderação de conteúdo que amplamente favorecem a liberdade de expressão (gerando, assim, plataformas livres e capazes de gerar externalidades positivas). Afinal, redes sociais não têm incentivos para interferir de maneira excessiva sobre o compartilhamento de conteúdo por seus usuários, já que um excesso de controle pelas redes poderia incomodar seus usuários e incentivar a migração para outros serviços. Ao mesmo tempo, as redes identificam e tolhem abusos, para evitar que seus ambientes virtuais se tornem hostis ou sejam instrumentalizados para fins ilegítimos (portanto, mitigando externalidades negativas). Assim, não há qualquer indicação de que as transações entre agentes privados (redes sociais, seus usuários e anunciantes) sejam incapazes de lidar com o problema das externalidades nesse caso e demandem a intervenção do Estado. E mais, a MP poderia, na verdade, ter o efeito reverso de subverter os incentivos e fomentar atividades que geram externalidades negativas importantes (como fake news, discurso de ódio etc.).
Normas como a prevista pela MP 1068, portanto, intervêm excessivamente sobre um aspecto central do design das redes sociais, que é a criação e a aplicação de regras de moderação de conteúdo. Ao introduzir essa intervenção no ordenamento jurídico, a MP 1068 necessariamente restringia a livre inciativa, limitava a livre concorrência e afastava a liberdade de contratação entre usuários e redes. A MP teve vida curta, mas será necessária atenção para que eventuais iniciativas semelhantes não ameacem o dinamismo e a inovação que caracterizam os mercados digitais e têm gerado claros benefícios aos consumidores.
Ademir Antonio Pereira Jr. é doutor e mestre em Direito pela USP, mestre em Direito, Ciência e Tecnologia pela Stanford University e membro do escritório Advocacia José Del Chiaro.
Yan Villela Vieira é mestre em Direito pela USP e membro do escritório Advocacia José Del Chiaro.