Opinião

Modulação de efeitos e juízo de impossibilidade

É preciso tecer considerações em prol de uma maior reflexão sobre o tema

28 de abril de 2021

Por Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski*

Artigo publicado originalmente na ConJur

Nesta quinta-feira (29/4), o STF apreciará os embargos de declaração opostos pela PFN contra o acórdão que, na sistemática de repercussão geral, assentou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS destacado nas bases de cálculos das contribuições ao PIS e Cofins (RE 574.706).

Nos termos do artigo 1.022 do CPC, os embargos apenas são cabíveis para sanar omissão, contradição, obscuridade ou erro material. Na hipótese, tanto os votos vencedores e vencidos proferidos pelos ministros do STF [1] quanto o conteúdo das decisões proferidas pelas instâncias ordinárias [2] demonstram que a tese submetida à apreciação do STF disse respeito à exclusão do ICMS destacado da base de cálculo das contribuições, o que afasta a possibilidade lógica de haver omissão ou obscuridade no acórdão a esse respeito. Mesmo se isso não estivesse claro, a subtese da Fazenda teria surgido apenas nos embargos de declaração, pois nada há no recurso extraordinário do contribuinte ou nas contrarrazões da PFN a respeito desse tema. Conforme orientação pacífica do STF [3], embargos não se prestam a inovações recursais.

Quanto à modulação de efeitos, é preciso tecer considerações em prol de uma maior reflexão sobre o tema, dada a utilização frequente dessa técnica em matéria tributária decidida contra o Estado.

Conforme o artigo 927, § 3º do CPC, a modulação apenas revela-se cabível “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante”. No caso, não houve alteração de jurisprudência. O entendimento do acórdão embargado reiterou, em 2017, orientação jurisprudencial firmada pelo Plenário do mesmo Tribunal, em 2014, nos autos do RE 240.785, cuja maioria de votos a favor do contribuinte estava formada desde 24/8/2006.

Não se desconhece, por outro lado, que o artigo 27 da lei 9.868/99 alude à modulação de efeitos com base em “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”. Porém, tal previsão não é um “cheque em branco” à disposição do Tribunal Constitucional.  A atribuição de eficácia prospectiva é exceção e não regra. E, como tal, somente pode ser utilizada quando demonstrada a imprescindibilidade da modulação, o que envolve a impossibilidade fática de se assegurar o direito reconhecido pela decisão.

Esta é a única interpretação do instituto que se pode dizer conforme ao núcleo institucional da Constituição (CF/88) o qual tem na “Justiça” seu “valor supremo” e fundamento da República (CF/88, Preâmbulo e artigo 3º, I). A concreção da Justiça se dá, dentre outras, por intermédio da regra prevista no artigo 5º, XXXV (CF/88) [4], segundo a qual nenhuma lesão de direito individual pode ser suprimida e afastada da apreciação do Poder Judiciário. Trata-se de direito individual e dever do Estado. Logo, o conceito de justiça não é meramente teórico: o justo se efetiva por meio de atos do poder competente que, num procedimento regular e contraditório, ouve o pleito de alguém, reconhece a lesão a determinado direito (e, portanto, uma injustiça) e assegura seu restabelecimento em cumprimento à supracitada norma constitucional [5].

Sem a reparação do direito violado, o pilar da justiça cede, assim como desabam, quase como em um efeito “dominó”, os princípios a ele conectados, como é o caso da isonomia, boa-fé objetiva, segurança jurídica, livre concorrência, solidariedade, responsabilidade do Estado, propriedade, etc.

É o que ocorre quando alguém ajuíza ação para o reconhecimento de um direito; o Judiciário declara, em abstrato, a existência do direito e a lesão a ele correspondente; mas a respectiva demanda individual nada colhe ao final, em termos de reparação, porque o STF, em juízo de repercussão geral, modula os efeitos de sua decisão para frente sem qualquer ressalva às ações em curso.

Não há “ponderação” que permita modular os efeitos de uma decisão em tal situação. Como é sabido, regras são aplicadas em juízo de “tudo ou nada”, mediante subsunção, ao passo que princípios são aplicados mediante ponderação [6]. O conteúdo do artigo 5º, XXXV da CF/88 não é um princípio e sim uma regra: se houver lesão ou ameaça a direito, ela não pode ser excluída de solução pelo Poder Judiciário. E, se essa exclusão não pode ser feita pela lei, tampouco se admite que o próprio órgão julgador a faça. Se “o que a Constituição proíbe obter diretamente” também não pode ser obtido “por meios transversos, o que configuraria hipótese clássica de fraude à Constituição” [7], o Judiciário não pode reconhecer determinado direito e, ao mesmo tempo, torná-lo inefetivo, tal como tem feito quando se reconhece que determinado tributo é inconstitucional mas se nega o direito à restituição pela via de modulação.

Basta imaginar a situação de dois contribuintes, A e B, que ajuízam ações idênticas para cobrar a devolução do mesmo tributo, incidente sobre o mesmo período de apuração. O contribuinte A intenta sua ação em um dia, perante o cartório “x”, e o contribuinte B, no dia seguinte, perante o cartório “y”. O contribuinte B, que ajuizou a ação um dia depois, consegue finalizar seu processo antes do julgamento de repercussão geral por alguma razão alheia a sua vontade (por exemplo: alta velocidade do cartório “y”/perda de prazo do Poder Público, etc.). Já o contribuinte A, que ajuizou a ação um dia antes de B, não consegue o mesmo por motivos diversos (por exemplo: lentidão do cartório “x”/juiz diverso/Turma do Tribunal diferente, etc.). Com a modulação de efeitos da decisão, sem ressalva às ações em curso, o contribuinte B, que já possui título transitado em julgado, não será afetado pelo julgamento ante a garantia da coisa julgada [8]. Já o contribuinte A, por não ter tido a mesma “sorte”, simplesmente não terá direito algum reconhecido, nada obstante tenha se submetido exatamente à mesma exação de B e que fora declarada indevida pela Corte Suprema.

A injustiça do exemplo verifica-se sob ângulos diversos. Primeiro, por representar a negação da regra do artigo 5º, XXXV da CF para o contribuinte A (efetivação da Justiça). Segundo, por gerar tratamento flagrantemente desigual sobre situações idênticas (isonomia). Terceiro, por propiciar ao contribuinte B incontestável vantagem concorrencial sobre A (livre concorrência). Quarto, por decorrer de fatos futuros, imprevisíveis e externos ao contribuinte que foi ao Judiciário (vg.: velocidade de julgamento; reconhecimento ou não da repercussão geral do tema, modulação ou não da decisão, etc.), o que praticamente transforma o processo judicial em loteria (segurança jurídica). Quinto, por criar incentivo adicional ao legislador inconstitucional para fazer caixa sobre o patrimônio dos contribuintes, gerando enriquecimento ilícito do Estado (propriedade).

Na realidade, a modulação de efeitos é um juízo de impossibilidade e não, propriamente, de ponderação.

Desde a primeira vez em que o STF modulou os efeitos da pronúncia de inconstitucionalidade estavam em jogo os efeitos de sua decisão sobre fatos consumados, razão por que era praticamente impossível executar o decidido sem gerar graves consequências e insegurança. No primeiro precedente, atribuiu-se eficácia prospectiva à decisão, pois sua nulidade ab initio redundaria na necessidade de redução do número de vereadores do Município de Mira Estrela no meio do mandato [9]. No segundo, a declaração de inconstitucionalidade, com pronúncia de nulidade, implicaria a extinção do Município de Luís Eduardo Magalhães, gerando a nulidade de todos os atos jurídicos realizados com base nessa existência de fato (nascimentos, casamentos, óbitos, etc.) [10]. Em julgados posteriores, verificou-se que a ausência de modulação dos efeitos implicaria, por exemplo, a interrupção imediata da prestação do serviço de saneamento básico [11] ou a rescisão de contratos de transporte público cujos objetos já haviam sido prestados [12].

O que havia de comum nesses casos era a impossibilidade prática de executar o decidido pela Corte Constitucional, ante a existência de fatos consolidados no tempo. Tratou-se, portanto, de um juízo de impossibilidade e não de ponderação.

Em matéria tributária não deveria caber modulação de efeitos a afetar e suprimir o direito daquele que ingressou em juízo. Afinal, não existe impossibilidade, em termos econômicos, para que o Poder Público pague aquilo que foi reconhecido como devido pelo Judiciário.

O Estado pode, dentre outros, aumentar a dívida pública, emitir moeda, criar/majorar tributos incidentes sobre a coletividade, negociar formas de pagamento, instrumentos, aliás, recentemente utilizados, em alguma medida, por praticamente todas as Nações do mundo para combater a pandemia da Covid-19. O Estado ter de pagar por ter perdido uma disputa judicial é um dever inerente ao regime de Direito. Cabe a ele repartir esses encargos por toda a sociedade, eventualmente onerando mais aqueles que possuem maior capacidade contributiva (artigos 5º, caput, e 145, § 1º CF/88). Porém, é inadmissível, via modulação de efeitos, impor o encargo financeiro da derrota judicial exatamente sobre quem foi ao Judiciário, isto é, sobre a vítima!

Esse raciocínio levaria, no limite, à irresponsabilidade do Estado e violação ao artigo 37, § 6º da CF/88, segundo o qual toda a sociedade arca com a recomposição dos prejuízos que o Estado causa a alguém. De fato, a exigência inconstitucional de tributo tem efeitos equivalentes a danos patrimoniais cometidos injustamente pelo Estado contra o particular. Imagine-se que, durante a construção de uma hidrelétrica, diversas propriedades de pequeno, médio e grande porte tenham sido inundadas. De acordo com o artigo 37, §6º, da CF/88, mesmo sendo lícita a atividade, caberia a reparação dos danos sofridos por esse grupo, pois não é constitucionalmente legítimo que seus membros suportem sozinhos os danos causados por uma obra que aproveita a todos, ante os imperativos de isonomia e solidarização de riscos. Não se cogita que, ao julgar as ações indenizatórias desse grupo, o STF reconheça ter havido ato, dano e nexo causal, porém module os efeitos apenas para atos futuros. Afinal, isso consistiria inaceitável e evidente  injustiça.

Se assim o é, por que ainda se insiste em tratar a restituição de indébito tributário como se fosse facultativa e não obrigatória aos olhos da Constituição?

Em suma, é inconstitucional a prática de se reconhecer a lesão e ao mesmo tempo tolher, por vias oblíquas, a respectiva reparação. Devolver o que foi injustamente tirado dos cidadãos e empresas não é opcional: é obrigatório. Não basta afirmar que garantir a restituição seria indesejável numa “ponderação” à luz do interesse social (que não se confunde com interesse da Administração) [13] [14] ou da segurança jurídica por existirem muitos beneficiários ou por ser grande o impacto orçamentário. A justiça não é excepcionável, daí por que a modulação de efeitos se submete a juízo de impossibilidade.

Na hipótese, é preciso rememorar que a previsão de perda tem sido contingenciada desde 2007 pela União via orçamento[15]. Por outro lado, não seria consentâneo com a distribuição constitucional de responsabilidade imputar o ônus de arcar com os efeitos econômicos da pandemia — que decorre de fato externo ao julgamento — apenas ao grupo de indivíduos vencedor de demanda judicial contra a União. Por isso, espera-se que o STF rejeite os embargos da Fazenda e negue seu pleito de modulação. Caso o STF mude o que já foi julgado no caso, declarando, por exemplo, que o ICMS a ser excluído da base de cálculo é o recolhido e não o destacado, então haverá alteração de entendimento, justificando-se sua aplicação para frente, ressalvando-se o critério do ICMS destacado para os fatos geradores ocorridos até a conclusão do julgamento.

 

[1] “Desse quadro é possível extrair que, conquanto nem todo o montante do ICMS seja imediatamente recolhido pelo contribuinte posicionado no meio da cadeia (distribuidor e comerciante), ou seja, parte do valor do ICMS destacado na “fatura” é aproveitado pelo contribuinte para compensar com o montante do ICMS gerado na operação anterior, em algum momento, ainda que não exatamente no mesmo, ele será recolhido e não constitui receita do contribuinte, logo ainda que, contabilmente, seja escriturado, não guarda relação com a definição constitucional de faturamento para fins de apuração da base de cálculo das contribuições” (voto vencedor da ministra Cármen Lúcia, relatora, fl. 23/24).

“o valor relativo ao encargo financeiro do ICMS destacado na nota fiscal compõe a receita bruta da empresa” (voto ministro Dias Toffoli)

“(…) o valor referente ao ICMS destacado em nota fiscal não é transferido automaticamente, nem é vinculado ao recolhimento do tributo como se permanecesse intangível no caixa do contribuinte de direito até sua entrega ao erário estadual” (voto ministro Gilmar no RE 574706)

“Por conseguinte, o desate da presente controvérsia cinge-se ao enquadramento do valor do ICMS, destacado na nota, devido e recolhido, como receita da sociedade empresária contribuinte. (…)Logo, embora não haja incremento patrimonial, o valor relativo ao ICMS destacado e recolhido referente a uma operação concreta integrará a receita efetiva do contribuinte, (…)” (voto ministro Luiz Edson Fachin).

[2] A sentença julgou “procedente o pedido, e conced[eu] a segurança pleiteada, para reconhecer o direito da impetrante de excluir da base de cálculo da Cofins e do PIS a parcela relativa ao ICMS destacado da nota fiscal”. O mesmo constou do acórdão recorrido.

[3] RE 596701 ED, relator(a): Edson Fachin, Pleno, DJe 1/3/2021.

[4] Direito e Justiça são “lei em ação”, daí o papel do Poder Judiciário em sua efetivação (ZIPPELIUS, Reinhold. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 46-54).

[5] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 209-210, 283 e 391.

[6] ATIENZA, Manuel, O sentido do direito, Escolar Editora, 2013, p. 90.

[7] Cf. voto do ministro Sepúlveda Pertence na ADI nº 2.984-MC/DF, j. 4/9/2003.

[8] Conforme já declarado tanto pelo STF quanto pelo STJ: AR 2.297, relator ministro Edson Fachin, J. 3/3/2021, RE-RG 590.809, ministro Marco Aurélio, J. 24/11/2014, AR 4.443, Red. ministro Gurgel de Faria, DJ 14/6/2019.

[9] RE 197917, relator(a): Maurício Côrrea, Tribunal Pleno, DJ 7/5/2004.

[10] ADI 2240, relator(a): Eros Grau, Tribunal Pleno, DJe 3/8/2007.

[11] ADI 1842, Relator(a) p/ Acórdão: Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 16/9/2013.

[12] ARE 1216116 AgR-ED-AgR, Relator(a): Alexandre de Moraes, DJe 12/5/2020.

[13] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015. P. 70-76.

[14] GABARDO, Emerson & Rezende, Maurício Corrêa de Moura. O conceito de interesse público no direito administrativo brasileiro. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 115/2017.

[15] fl. 222 do Anexo V da Lei nº 11.514/2007 (LDO 2008). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/ldo/2008/tramitacao/redacao-final/lei%2011.514-anexos.pdf.

 

Hamilton Dias de Souzaé fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF), especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.

 

Daniel Corrêa Szelbracikowskié sócio do escritório Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo IDP e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.

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