Por Mariana Machado Pedroso
Artigo publicado originalmente no Jota.
Inicialmente, importante trazer a lume a repercussão decorrente das notícias veiculadas acerca das intimações enviadas pela Receita Federal a aproximadamente 30 artistas da TV Globo. Seus contratos teriam sido acertados por meio de pessoa jurídica ao invés de terem sua carteira de trabalho anotada como qualquer empregado.
O interesse do fisco reside não em proteger esses profissionais de eventual fraude na contratação imposta por quem detém os meios de produção (nesse caso a TV Globo), mas sim cobrar diferenças de impostos destas pessoas. Afinal, a cotização do Imposto de Renda de pessoa jurídica varia de 6% a 15%, enquanto a tributação do empregado poderá facilmente alcançar 27,5%.
Mas daí reverberaram questionamentos sobre a legalidade (ou não) da contratação feita pela TV Globo diretamente com as empresas – pessoas jurídicas ou simplesmente PJs criadas pelos próprios artistas no lugar de um contrato de trabalho regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Seria tal contratação ilegal?
É importante destacar, de início, que as relações no âmbito laboral poderão existir em vários formatos, inclusive como “relação de emprego”, sendo esta regida pela CLT, e “relação de trabalho”, firmada por profissionais autônomos e representantes comerciais, por exemplo.
Assim, é possível afirmar que toda “relação de emprego” é uma “relação de trabalho”, mas nem toda “relação de trabalho” será uma “relação de emprego”. E tal distinção é indispensável para que se possa avaliar qual será o diploma normativo que regulará a relação contratual existente: se for uma relação de emprego, a regulação se dá pela CLT com todos os direitos e obrigações nela previstas. Caso se trate de “relação de trabalho”, a legislação comum civil disciplinará direitos e obrigações.
Para essa pergunta vem a regulamentação legal esclarecer, no artigo 3º da CLT, que “empregado” será “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.
Porém, mesmo com a definição legal, as dúvidas subsistem. Afinal, aquele trabalhador autônomo como, por exemplo, um contador que presta serviços regularmente a uma empresa, e trabalha em sua residência, não seria um empregado?
Do exemplo dado resta claro que, na verdade, a prestação de serviços por profissional autônomo (não-empregado) geralmente trará a presença de quatro dos cinco requisitos inerentes à relação de emprego: pessoalidade, pessoa física, não eventualidade e onerosidade (pagamento).
E como o termo utilizado possui uma ampla interpretação, cuidou a doutrina jurídica e a jurisprudência de afunilar tal conceito ao entendimento de que “dependência” seria, para fins de existência de vínculo de emprego, “subordinação”. Nesse sentido, é comum e corriqueiro acessar conteúdos jurídicos indicando que, existindo subordinação entre o prestador de serviços e o tomador, será este profissional “empregado”.
Feitas estas considerações, já se tem a resposta ao questionamento inicialmente feito: afinal, a contratação feita pela TV Globo de seus artistas por meio da assinatura do contrato com a PJ por eles criada é ilegal?
Pela análise aprofundada da legislação trabalhista, não é possível afirmar, de forma categórica, que os grandes veículos de comunicação, tal qual a TV Globo, ao contratarem artistas como sendo autônomos por meio da pessoa jurídica por eles criada, por si só, estariam a fraudar a legislação.
Isso porque a verificação de eventual fraude na contratação deverá observar outras questões, sendo a principal a forma como o contrato é executado. Essa análise não se restringirá a avaliar o tipo de documento assinado (anotação na carteira de trabalho ou contrato de prestação de serviço firmado entre empresas como, no caso inicial, entre a TV Globo e a PJ do artista), mas sim o que ocorre, de fato, durante o trabalho.
Desse modo, ainda que exista um contrato firmado com a PJ, se na execução do trabalho o artista prestar serviços pessoalmente, com habitualidade, recebendo remuneração e, sobretudo, sob dependência do seu contratante, será ele considerado empregado. Para que haja tal reconhecimento, indispensável será o ajuizamento de ação trabalhista na Justiça do Trabalho, órgão competente a reconhecer eventual fraude na contratação e, ato contínuo, a existência de um contrato de trabalho até então não formalizado.
Especificamente sobre a contratação de artistas, não há dúvidas acerca da presença de três requisitos. A pessoalidade é evidente, afinal ninguém concordaria em contratar o Chico Buarque de Hollanda e, no dia do espetáculo, assistir a um show do Wesley Safadão. O mesmo valeria para o contrário.
Também evidente está a presença da onerosidade. Afinal, não é crível aceitar que os artistas que trabalham na televisão, por exemplo, o fazem sem receber qualquer quantia ou benefício em contrapartida.
Já a não eventualidade poderá facilmente ser considerada presente, sobretudo se levarmos em consideração o caso trazido. As novelas duram meses, devendo o artista comparecer de acordo com um cronograma para gravar suas participações.
Como o que é avaliado é a realidade do trabalho, a existência de um contrato formal firmado por uma PJ, por si só, não autoriza a conclusão de inexistência de relação de emprego (já que ser pessoa física é um dos requisitos legais); até porque pode ser um artifício exatamente para tentar fraudar a legislação trabalhista. Sobretudo se presentes os outros 4 requisitos, principalmente a “dependência” (ou mais conhecida subordinação), que será, abaixo, analisada.
Como todas as análise de outros profissionais, com os artistas não será diferente. O que definirá sua relação será a existência ou não de dependência no desenvolvimento de suas tarefas à emissora de TV.
E sob esta ótica vale a reflexão: esses grandes artistas que veem sendo citados nas matérias reproduzidas em todos os meios de comunicação dependem da TV Globo para exercer suas atividades? Não poderiam eles atuar de forma independente? Fazer teatro? Cinema?
Não parece razoável que estes profissionais dependam da TV Globo como os demais empregados dependem de seus empregadores.
Ficam, portanto, as definições e informações acima para que vocês, leitores, tirem suas próprias conclusões acerca da regularidade ou não das contratações dos artistas.
Mariana Machado Pedroso, advogada especializada em Direito do Trabalho, é sócia do Chenut Oliveira Santiago Advogados.