Opinião

Liberdade de expressão sob pressão

Abusos devem ser combatidos, mas direitos precisam ser preservados

14 de agosto de 2020

Por Rodrigo Meyer Bornholdt

Artigo publicado originalmente na ConJur

Desde a Constituição de 1988, a doutrina e a jurisprudência sobre a liberdade de expressão abandonaram concepções autoritárias obliterantes de seu pleno desenvolvimento. Na contramão de uma pré-compreensão que conferia precedência a outros direitos de personalidade ou aos interesses do Estado, deu-se especial atenção ao modelo norte-americano, em especial nas disputas envolvendo figuras ou assuntos públicos. Chegou-se mesmo, como no caso da revogação total da Lei de Imprensa, a suplantar aquilo que considero um adequado equilíbrio, como o existente na Europa.

Utilizando-se dessa compreensão ampla de liberdade de expressão, grupelhos antidemocráticos promovem toda sorte de crimes nas redes sociais. E, pior, protegidos pela cobertura institucional de um governo de extrema-direita, com pouco ou nenhum apreço pela democracia. A tentativa de tutela militar das instituições culmina também, obviamente, em gerar o que a Suprema Corte norte-americana cunhou como chilling effect à liberdade de expressão, dele sendo vítima, dentre outros, ninguém menos que o ministro Gilmar Mendes, quando sugeriu a possibilidade de as Forças Armadas se aliarem a um genocídio. Ora, como todas, a expressão é polissêmica, e indica, além disso, antes um posicionamento, um juízo de valor do ministro acerca do modo inadequado de condução da crise sanitária gerada pela Covid-19. Recordei-me do “caso Soldaten-Mörder” [1] (“soldados são assassinos”) na Alemanha, em que o Tribunal Constitucional Federal, não sem despertar forte polêmica, liberou essa expressão muito mais pesada, entendendo dever prevalecer uma tomada de posição antimilitarista, que se sobrepunha à agressão à instituição militar. Perceba-se que, em decisões como essa, reconhece-se haver a agressão, mas conclui-se pela prevalência da liberdade de expressão.

No meio propriamente jurídico, porém, cabe atentar à mudança de posicionamento do STF em face da liberdade de expressão, a partir do inquérito das fake news. A decisão do ministro Alexandre de Moraes, suspendendo contas de extremistas de direita, faz surgir do próprio STF ameaças a esse valor e direito tão caros à nossa civilização, não obstante suas melhores intenções.

A liberdade de expressão deve ser ainda mais protegida quando em face de expressões e concepções dissidentes. A instituição e consagração desse direito não serve apenas para debates educados no chá das cinco; nem deve ela ser funcionalizada, no sentido de servir apenas a finalidades mais nobres, como o direito à informação adequada. Por óbvio que ameaças à ordem democrática devem ser punidas com todo o rigor da lei. Para isso, porém, há todo um procedimento metódico adequado.

Uma das justificativas da decisão do ministro Moraes reside na ação orquestrada promovida por essas contas, com uso de robôs e disparos de mensagens em massa. Ora, cabe ao STF utilizar os meios para coibir tais repetições de mensagens. Aqui tem plena aplicação o princípio da proporcionalidade. Suspensão de contas é um remédio extremo, a ser utilizado apenas após várias outras medidas de contenção de agressões à ordem democrática.

A decisão do ministro Moraes não traz motivação suficiente para a restrição da liberdade de expressão dos acusados, mediante bloqueio de suas contas nas redes sociais. Ela ignora as possibilidades dogmáticas atuais e uma metódica mínima para justificar as restrições aos direitos. Cita Duguit, jurista do início do século XX, para sustentar o truísmo de que os direitos não são ilimitados; e depois recorre a Mirkine-Guetzévitch, em livro de 1933, para sustentar que direitos fundamentais podem ser restringidos por lei, numa construção dogmática aparentemente já superada. Isso porque, salvo autorização expressa da Constituição, só pode haver limitação por lei, com alcance limitado, para salvaguardar outros direitos constitucionalmente assegurados. A decisão não traz nenhuma palavra sobre o princípio da proporcionalidade, nenhuma cogitação sobre o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Ignora toda uma dogmática específica da liberdade de expressão, a distinguir fatos de opiniões, e deixa de sopesar em quais agressões prevalece a honra ou a imagem, e em quais delas a liberdade de expressão.

Ninguém questiona a capacidade intelectual do ministro Moraes. Conhecemo-la. Porém, decisões com motivação insuficiente apenas dão mais munição aos inimigos da democracia, que terão base para novamente criticar — e desta vez, com fundamento — a conduta do Supremo Tribunal Federal. Chamar o STF de “vergonha nacional”, como feito pelos extremistas, é de mau gosto, é agressivo, revela uma incompreensão das estruturas básicas de um Estado de Direito, mas é parte da livre expressão de opiniões. Não se trata aqui de afirmação de fatos, mas, sim, daquilo que, gostemos ou não, os indivíduos têm o direito de livremente pensar e expressar.

Levar tais opiniões, porém, aos trending topics do Twitter, por meio de perfis falsos, de robôs, de ações orquestradas a partir desses meios, é já outra conduta, dessa vez inconstitucional. Tais condutas refogem ao âmbito de proteção da liberdade de expressão. Assemelham-se a divulgar uma entrevista inventada, como no caso Soraya [2], repudiada pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. Aqui, aliás, revela-se a importância de um adequado tratamento metodológico do conflito. Numa jurisprudência dos valores reconstruída, como a de Robert Alexy, uma tal entrevista seria permitida, ao menos num primeiro momento, até que conflitasse com outros bens constitucionalmente protegidos. Mas aí se daria espaço para uma indevida ponderação. Isso porque a liberdade de expressão, assim como outros direitos, possui um âmbito de proteção que também se delineia a partir das configurações de cada caso, mas que não tolera o uso de artifícios e falsidades para sua difusão, como ensina a metódica estruturante de Friedrich Müller. Em outras palavras, deve-se utilizar em tais situações um Tatbestand (suporte fático) restrito.

Portanto, uma ação articulada nas redes sociais pode ou não ser constitucional, conforme o teor do que divulga e os meios de que se utilize. Quanto a esses, se houver uma ação com base apenas no engajamento dos militantes, está-se utilizando da liberdade de expressão e de algo equivalente à própria liberdade de manifestação e de reunião. Outra coisa seria o uso de uma hashtag #fechamentodoSTF, atentatória às instituições e passível de enquadramento na Lei de Segurança Nacional (necessitamos, aliás, de uma nova lei que proteja o Estado democrático, elaborada em outros moldes).

Ora, é precisamente pela qualidade de suas decisões que o Judiciário preserva e enriquece sua legitimidade. E quando em jogo a liberdade de expressão, é preciso que as instituições deixem o sistema respirar, deem-lhe espaço de ventilação. Fui um dos primeiros a defender a abertura do Inquérito das Fake News, no ano passado [3], quando muitos juristas ainda torciam o nariz a isso, sendo que posteriormente viram a inevitabilidade e a correção da medida. Mas cabe agora ao STF reposicionar-se, combatendo milícias e as agressões ao Estado democrático de Direito de modo adequado. É preciso usar o arsenal que lhe é próprio: em vez de violência institucional, uma dogmática adequada da liberdade de expressão e da colisão entre direitos fundamentais. E a utilização de meios que desidratem as ações de agressão à democracia. Desse modo, provamos ser melhores e estaremos acima da quadrilha que quer tomar de assalto o país!

[1] BVerfGE 93, 266.

[2] BVerfGE 34,269.

[3] Artigo no portal Estadão, de 30/4/2019: “O STF, a liberdade de expressão e os ovos da serpente”.

 

Rodrigo Meyer Bornholdt é advogado, doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR e autor dos livros “Métodos para a resolução do conflito entre direito fundamentais”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, e “Liberdade de expressão e direito à honra: uma nova abordagem no direito brasileiro”. Joinville: Bildung, 2010.

 

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