Opinião

Liberdade de expressão e a responsabilidade dos provedores

Direito de manifestação não deve servir à alimentação do ódio e à intolerância

8 de junho de 2022

Por André Damiani e Vinícius Fochi*

Artigo publicado originalmente na ConJur

O Supremo Tribunal Federal estabelecerá o limite da responsabilidade dos provedores de serviços de internet por publicações de terceiros em suas plataformas.

Os ministros julgarão se os provedores devem fiscalizar tudo quanto publicado e indenizar caso não retirem do ar conteúdos lesivos, mesmo que não haja anterior decisão judicial determinando a sua exclusão.

Por um lado, há quem entenda que a remoção antecipada de conteúdo caracteriza censura prévia, violando-se o direito constitucional à liberdade de expressão. De outro, considera-se que a manutenção do material lesivo causa prejuízo aos usuários, inclusive, a depender do caso concreto, violando-se outras garantias fundamentais, como direito à dignidade da pessoa humana, à igualdade, dentre outras.

O tema não comporta solução perfeita e, muito menos, admite a inércia estatal em seu enfrentamento.

Bem por isso, antes de uma análise minudente do debate instaurado na Suprema Corte brasileira, é imprescindível olhar como o mundo vem se posicionando acerca do conflito “liberdade de expressão x responsabilidade civil dos provedores pelos conteúdos postados”.

No modelo norte-americano, a liberdade de expressão está consagrada na Primeira Emenda da Constituição, introduzida em 1791, prevendo que não caberá ao Congresso americano restringi-la.

Por consequência, o Estado norte-americano tende a não restringir o discurso e a não interferir no debate público com base no conteúdo da mensagem, da convicção ou da ideologia que está sendo veiculada. Assim, a intervenção estatal deve ser precedida de uma forte justificativa, levando-se em consideração a relevância do contexto e uma possível incitação à prática de uma ação ilegal iminente (imminent action).

A título de exemplo, o modelo norte-americano permite, de uma forma geral, que o cidadão vinculado ao movimento Ku Klux Klan compartilhe publicações de cunho racista e antissemita, não havendo qualquer responsabilização pelo conteúdo divulgado, nem do agente nem do provedor.

Com efeito, eventual intervenção estatal se dará apenas no caso de o conteúdo publicado incitar a realização de uma conduta ilegal iminente, ou seja, representar um perigo de ação concreta, como, por exemplo, a convocação dos demais membros para prática de um linchamento.

Em relação aos provedores, o modelo estadunidense isenta as plataformas de aplicação da responsabilidade quanto ao conteúdo lesivo publicado por terceiro — salvo infração a direitos autorais, que possui legislação própria.

Não obstante a isenção de responsabilidade, admite-se a retirada de conteúdo após mera notificação extrajudicial do usuário, no caso de violação às políticas de uso da plataforma.

Nesse modelo, entretanto, a sociedade vem sofrendo com o avanço dos chamados hate speech (“discurso de ódio”), ideias segregacionistas, discriminatórias e antidemocráticas que vêm tomando as redes e causando uma verdadeira fratura na democracia no país.

Ora, até mesmo a democracia mais liberal do mundo revisita a sua forma de lidar com a questão e fomenta a discussão pública para buscar maneiras de evitar e responsabilizar o compartilhamento de ideias danosas.

Já o modelo alemão, por sua vez, não é essencialmente restritivo à liberdade de expressão, mas permite restrições, como, por exemplo, a criminalização de toda e qualquer manifestação atrelada ao discurso nazista e à negação do Holocausto.

Ainda, o modelo alemão difere do norte-americano porquanto impôs aos provedores de aplicação com mais de dois milhões de usuários em seu território a responsabilidade e a atribuição de avaliar, a partir de mera notificação extrajudicial, a ilegalidade do conteúdo publicado por terceiro, conforme prevê o diploma Network Enforcement Act, aprovado em 2017.

Mesmo prevendo restrições efetivas, o país europeu também discute a necessidade de recrudescimento dos mecanismos de controle sobre os conteúdos compartilhados, uma vez que o país, assim como as demais democracias do mundo, vem sofrendo com a proliferação de movimentos extremistas, com as fake news e os discursos de ódio.

Já no Brasil, a liberdade de expressão é um direito fundamental previsto na própria Constituição Federal. Em quaisquer de suas formas, atina com a autonomia e o livre desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, estando intrinsecamente ligado à própria ideia de democracia.

Nosso país, diferentemente dos modelos estrangeiros, ainda não possui um posicionamento sólido, hoje dependente da casuística intervenção do Poder Judiciário. Na prática, certa discrepância no enfrentamento da matéria acarreta verdadeira insegurança jurídica.

Ocorre que toda limitação deve ser fundamentada, evidenciando-se a necessidade da medida restritiva sempre que não houver caminho diverso a ser trilhado. Evita-se, assim, o arbítrio puro e simples.

Com relação aos provedores, na letra fria da lei, o Brasil permite a responsabilização civil por conteúdo de terceiros, desde que haja prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo, cujo descumprimento é requisito para a sua penalização, nos termos do artigo 19, do Marco Civil da Internet.

Qual a polêmica? Justamente a constitucionalidade do referido dispositivo, com a respectiva exigência de decisão judicial para responsabilização dos provedores (RE 1.037.396/ STF) e se a empresa tem ou não o dever de fiscalizar o conteúdo publicado, retirando do ar quando considerado ofensivo ou nocivo (RE 1.057.258/STF).

Há casos, no entanto, em que a própria legislação nacional veda a prática de determinada conduta, não havendo necessidade de uma decisão judicial para dizer que o ato é ilegal ou não. O melhor exemplo para elucidar a questão diz respeito às publicações de cunho racista.

Ora, a própria Constituição Federal possui um mandamento de criminalização, prevendo que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da Lei 7.716/1989: “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Ainda, o Código Penal, em seu artigo 140, § 3º, também tipifica a conduta de injúria racial, agora equiparado pelo próprio STF ao crime de racismo, para quem injuriar com a utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Para além disso, o próprio Supremo Tribunal Federal equiparou ao crime de racismo a homofobia (ADO 26 e MI 4.733) e o antissemitismo, conforme o paradigmático caso “Ellwanger” (o julgamento tratava do caso de Siegfried Ellwanger Castan, um brasileiro que foi editor de livros antissemitas e de negação do Holocausto).

Em casos assim, não há razão para que o provedor aguarde uma determinação judicial para dizer que o conteúdo é ilícito ou inapropriado.

Diferente é o caso, por exemplo, de publicações que visem o retorno da monarquia ao país. Embora a prima facie pareça um posicionamento antidemocrático, o seu conteúdo não menospreza ou persegue um grupo determinado, representando mera discussão acerca da forma de governo que o país deve seguir.

Em síntese, parece inafastável que os provedores podem e devem remover conteúdos que violem as políticas de uso da plataforma, bem como condutas criminalizadas por nosso ordenamento jurídico, como nos casos de racismo, pornografia infantil, apologia ao crime, dentre outros.

Portanto, em nosso sentir, após regular notificação extrajudicial do usuário, conforme se dá no modelo alemão, os provedores podem, sim, ser responsabilizados.

À luz do quanto exposto, em casos em que a própria legislação veda o conteúdo da publicação, a responsabilidade dos provedores surge muito antes de qualquer decisão judicial, sem que isso represente violação à liberdade de expressão.

Afinal, como bem lembrou o eminente ministro Dias Toffoli, “a liberdade de expressão não deve servir à alimentação do ódio, da intolerância, da desinformação. Essas situações representam a utilização abusiva desse direito”.

André Damiani é sócio fundador do Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico e LGPD.

Vinícius Fochi é advogado criminalista no Damiani Sociedade de Advogados.

 

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