Opinião

Lei federal 14.129 deve ajudar a desburocratização estatal

Desafios para o seu cumprimento, no entanto, são vários

21 de maio de 2021

Por André Damiani e Flávia Bortolini*

Artigo publicado originalmente no Estadão

Chamada “Lei do Governo Digital”, a Lei 14.129/2021 — que dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o aumento da eficiência da máquina estatal — busca desburocratizar os procedimentos governamentais e tornar mais eficiente o funcionalismo público, apostando na transformação digital como um meio de proximidade com o cidadão através da disponibilização, em plataforma única, do acesso aos serviços, usando de uma linguagem compreensível, sem a necessidade de solicitação presencial.

Em seu propósito primeiro está o desenvolvimento de uma plataforma única de acesso às informações e serviços públicos. Por meio dela os documentos ali expedidos serão reconhecidos graças à certificação digital, que lhes propiciará a autenticidade necessária. A plataforma já existe desde janeiro de 2019 e disponibiliza, aproximadamente, 2.832 categorias de serviços digitais no portal www.gov.br, gerando uma economia anual de 2 bilhões de reais, segundo o governo.

Alavancado pela pandemia, já que foi necessário aos órgãos públicos se adequarem para manter a continuidade do atendimento ao cidadão, o texto originário do Projeto de Lei nº 317/2021, de autoria do deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), sofreu vetos pertinentes. O principal deles atingiu o parágrafo 3º do artigo 29, que disciplinava a cobrança, por parte do poder público, pelo fornecimento de dados. O “pedágio”, como foi chamado, recairia sobre diversos dados geridos pelo governo, dentre eles mapas topográficos, levantamentos habitacionais, epidemiológicos e outros levantamentos estatísticos. A rejeição se deu após manifestação contrária do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, bem como de outras entidades ligadas ao setor de tecnologia, que utilizam estes dados para desenvolvimento de suas principais atividades.

A lei entrará em vigor em 90 dias da sua publicação — ocorrida em 30 de março deste ano —para a União, em 120 dias para Estados e Distrito Federal e, por fim, em 180 dias para municípios, os quais deverão se adequar à plataforma única de disponibilização de documentos. E é nesse momento que iniciam os desafios para cumprimento da lei.

Ainda que vestida das melhores intenções, a promessa de desburocratização por meio de uma plataforma digital impõe limites a parcela significativa da população, que não possui acesso às redes. Na prática, a nova lei corre sério risco de não “pegar”. Para ilustrar, mesmo na capital de São Paulo, a mais populosa cidade do país, o acesso à internet jamais se consolidou nas periferias. Ainda em 2020, o Centro Regional de Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação apurou que a expressiva marca de 46 milhões de brasileiros são “excluídos digitais”.

Ainda que o Marco Civil da Internet, desde 2014, tenha como objetivo a promoção do direito universal ao acesso à internet, certo é que pouco se avançou na superação de barreiras econômicas e sociais para promover a efetiva inclusão digital da população mais carente. Assim, mesmo que o advento da internet tenha revolucionado o acesso à informação, milhões de brasileiros continuarão sofrendo com a lentidão e burocracia estatais.

Além disso, a promessa de melhoria do serviço público e disponibilização de documentos somente ocorreu semanas após um mega vazamento de dados e reiteradas invasões promovidas por hackers às plataformas governamentais do Ministério da Saúde e SUS. Os serviços fornecidos deveriam estar de acordo com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), eis que a proteção à privacidade e o tratamento adequado de dados entraram no radar do governo. Prova disso, também em março, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) finalmente publicou o regimento interno do órgão, cumprindo a Agenda Regulatória da ANPD para o biênio de 2021-2022, esclarecendo pontos e criando as diretrizes de procedimentos administrativos. Contudo, a ANPD segue sem aplicar qualquer sanção aos que não cumprem a referida Lei.

O fato é que hoje, no site www.gov.br/governodigital o cidadão já conta com serviços gratuitos de emissão da Carteira de Trabalho Digital e do Certificado Internacional de Vacinação, podendo ainda solicitar aposentadoria, pensão por morte e outros benefícios, todos numa única plataforma que busca cumprir a função prevista em lei, de desburocratizar o serviço público. É uma tentativa de colocar o país em um rol de nações que priorizam o acesso a serviços estatais por meio digital. Contudo, num país com dimensões continentais e contínuo aumento das desigualdades sociais como é o Brasil, o desafio se torna ainda maior e exigirá atenção redobrada do governo.

*André Damiani, especialista em LGPD e Direito Penal Econômico, é sócio-fundador do Damiani Sociedade de Advogados

*Flávia Bortolini, advogada especialista em Direito Empresarial e LGPD, é associada do Damiani Sociedade de Advogados

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