Por Livi Gerbase*
Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense
Diante da crítica situação em que nos encontramos, quando três crises se interagem — a sanitária, a econômica e a social —, é prudente reduzir as expectativas para 2021. Ultrapassada a metade do ano, o Brasil já superou a marca de 80 mil mortes em decorrência da pandemia, metade (49,5%) da população em idade produtiva está desocupada e vemos as vítimas da covid-19 nas periferias virarem novo indicador para estudiosos da desigualdade.
Não é difícil prever, portanto, que os desafios atuais vão continuar pelos próximos 12 meses. Se, hoje, necessitamos da mão visível do Estado, ano que vem também precisaremos de tais recursos extras a fim de amenizar os rescaldos desse cenário. Os poderes Executivo e Legislativo são os únicos capazes de injetar dinheiro na saúde, repassar mais verbas aos estados e municípios, ajudar as empresas castigadas com o isolamento social, combater o desemprego e a queda de investimentos, entre outras ações de recuperação da economia.
Contudo, o governo Bolsonaro não parece estar entendendo dessa forma seu papel em 2021. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que estabelece as metas e prioridades fiscais para o ano seguinte, é termômetro para os planos de gestão federal. E o projeto de lei (PLDO) que foi enviado pelo Executivo no dia 15 de abril dá um recado claro: em 2021, quem manda é o teto de gastos.
No texto, que só não foi aprovado pelo Congresso por causa da suspensão do recesso parlamentar, o governo estima um deficit primário de R$ 149,6 bilhões. Mas enfatiza que a impossibilidade de estimar arrecadação por conta da crise levará a uma meta de resultado primário flexível e, logo, não haverá contingenciamentos.
Apesar dessa positiva flexibilização em relação à meta de resultado primário — como acontece em 2020 devido ao estado de calamidade — o governo anuncia a retomada do teto de gastos, considerada no texto como a “âncora da política fiscal” em 2021. Nesse discurso, a possibilidade de o governo utilizar créditos extraordinários para gastar além do teto, como vem fazendo em 2020, parece fragilizada.
Fica a impressão de que, terminado o ano, o governo dará fim ao estado de calamidade e retomará o ajuste fiscal, o que limitará a capacidade do poder público de responder às dramáticas consequências da crise. Capacidade que vem sendo subutilizada já neste ano, pois apenas 45% do valor aprovado para fortalecer as ações de saúde foram executados até agora.
Não há nada mais prejudicial à população do que o Executivo considerar a crise encerrada em dezembro e jogar o país para o ajuste fiscal em 2021. Trata-se de um dos momentos mais difíceis para a maioria das pessoas na história recente. E isso não é fruto apenas de um acontecimento inesperado. Mesmo que a covid-19 não tivesse existido neste ano, os constantes cortes no orçamento da Saúde seriam sentidos nas centenas de cidades que não dispõem de UTI, na ausência de medicamentos ou de infraestrutura adequada para os atendimentos, entre outras deficiências no SUS.
Como explicar que quatro em cada cinco óbitos de gestantes e puérperas pelo coronavírus no mundo vieram do Brasil, se não pela histórica precariedade dos nossos serviços de apoio às mulheres? Só em 2019, o teto de gastos públicos retirou R$ 20 bilhões da área da saúde, segundo o Conselho Nacional de Saúde e, recentemente, relatório do Inesc mostrou vários exemplos do quanto os retrocessos sociais causados por anos de austeridade fiscal deixaram o país sem imunidade para enfrentar a pandemia.
Sendo a União o único entre os entes federativos com condições de gastar para além do que arrecada — já que os estados e municípios não podem emitir dívida pública —, cabe a ela o papel central no enfrentamento da crise. No limite, só a União pode impedir que a máquina pública nacional pare e que serviços essenciais não sejam suspensos devido à insuficiência de arrecadação.
De outro modo, os brasileiros estarão reféns da redução dos gastos pelo Estado, em meio a uma crise sem precedentes, vendo seu governo fugindo da realidade de um país cuja pobreza atinge mais de um quarto da população.
*Livi Gerbase é assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)