Por André Damiani e Diego Henrique
Artigo publicado originalmente na ConJur
“Canalizamos a violência vingativa no sistema penal, mas nos silenciamos quando o poder punitivo rompe os diques de contenção jurídica do Direito Penal e eclode em massacres, cujos autores são precisamente os que, segundo o discurso, têm a função de preveni-los” (Eugênio Raúl Zaffaroni, jurista argentino).
Os últimos dias têm sido marcados por uma onda crescente de protestos nos Estados Unidos em face do brutal assassinato de um homem afrodescendente — George Floyd —, cometido por um policial. Outra face da moeda, no Brasil ganharam força protestos contra a violência policial rotineiramente praticada contra o povo negro, nos guetos e morros tupiniquins.
Respeitadas as diferenças históricas entre as duas nações, fato é que o racismo estrutural permeia ambas as sociedades, cuja face mais cruel se mostra nos assassinatos cometidos pela polícia, demonstrando que essa população acabou excluída da esfera de proteção do Estado. Para muito além da ideia simplista de que todo policial é racista, cumpre destacar que a corporação (militar ou civil) não se obriga a mudar; afinal, veste couraça jurídica invencível.
Nos Estados Unidos, a doutrina da qualified immunity (imunidade qualificada), estabelecida pela Suprema Corte, funciona como escudo à responsabilização penal da violência policial. Trata-se de um verdadeiro passe-livre para toda sorte de abusos.
A referida doutrina surgiu em 1967, num contexto de aplicação excepcional: resguardar os agentes públicos que cometerem abusos no cumprimento da lei, porém agindo de “boa-fé e com causa provável”, acreditando eles, agentes, que suas ações estivessem respaldadas pela lei. No entanto, nos mais de 50 anos que se passaram, a doutrina se expandiu pelos tribunais norte-americanos e se tornou regra, de tal sorte que a boa-fé do agente público no exercício de sua função é sempre presumida, mesmo diante de abusos repugnantes e, quase sempre, intencionais (dolosos).
Isso acontece porque no sistema de Justiça americano, para que seja permitido à vítima processar seu agressor (oficial da lei), caberá àquela demonstrar que seu algoz violou leis federais ou direitos constitucionais “claramente estabelecidos” (clearly established). Aqui está o pulo do gato.
Só é possível demonstrar a violação de um “direito claramente estabelecido” mediante remissão a um precedente legal cujo contexto fático e circunstâncias sejam semelhantes ao caso presente e o réu (agente público) não tenha sido considerado imune (qualified immunity). O diabo é que não existem precedentes em favor das vítimas, uma vez que prevalece uma espécie de círculo vicioso inaugurado pela doutrina em 1967! Nas palavras de um juiz texano: “cara: o réu ganha; coroa: a vítima perde”.
Nas cortes de Pindorama nunca se cunhou doutrina sofisticada. A coisa é feita mais, vamos dizer… Na unha mesmo. A legitimação jurídica do extermínio do negro pobre no Brasil se materializa no arquivamento da maioria esmagadora dos “autos de resistência”, mediante promoção do Ministério Público e chancela do Judiciário.
Necessário esclarecer ao leitor que os autos de resistência contemplam uma narrativa padrão construída para demonstrar que a ação policial se deu em legítima defesa, na qual o morto é sempre suspeito. Essa narrativa prevalece mesmo quando as declarações dos policiais envolvidos são desmascaradas por laudos periciais que atestam disparos pelas costas, na nuca, à queima-roupa ou nas mãos — comprobatórios de que a vítima estava em posição de defesa ante os disparos.
Aliás, afirmou João Batista Damasceno, juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e doutor em Ciência Política, que os autos de resistência convertem os cidadãos em inimigos a serem combatidos, os quais têm sua dignidade vilipendiada a fim de justificar sua execução.
Nesse cenário, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo realizou pesquisa na qual concluiu que 90% dos autos de resistência são arquivados no Estado sem que haja investigação. No Rio, o número chega a 96%.
O Judiciário no papel de legitimador da violência não chega a ser novidade no Brasil. Em 1996, o desembargador Sérgio Verani (TJ-RJ) escreveu em seu livro Assassinatos em nome da lei que: “O aparelho repressivo-policial e o aparelho ideológico-jurídico integram-se harmoniosamente. A ação violenta e criminosa do policial encontra legitimação por meio do discurso do delegado, por meio do discurso do promotor, por meio do discurso do juiz. Se as tarefas não estivessem divididas e delimitadas pela atividade funcional, não se saberia qual é a fala de um e qual é a fala de outro — porque todos têm a mesma fala, contínua e permanente”.
Mais recentemente, o delegado da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro Orlando Zaccone, ao analisar mais de 300 autos de resistência para sua tese de doutorado, concluiu não haver dúvidas de que “estamos diante de uma política criminal com derramamento de sangue a conta-gotas. O massacre presente nos homicídios provenientes de ‘autos de resistência’ na cidade do Rio de Janeiro, assim como outros massacres na história, ganha ares civilizatórios a partir de uma forma jurídica ao construir a figura do inimigo matável, substancializada como um ‘outro diferente’ , ‘parte de um todo maligno’, ao qual se nega o tratamento como pessoa. Essa construção, feita no ambiente social, revela todo o seu esplendor nas palavras mortíferas dos promotores de justiça criminal, estabelecendo assim o vínculo oculto entre o direito e a violência”.
Dessa forma, é imperioso que a indignação da população, tanto a americana quanto a brasileira, volte-se também contra a atuação complacente do Judiciário, uma vez que o altíssimo número de cidadãos negros violentados e mortos pela força policial aponta claramente a existência de uma política de Estado (e não de governo, frise-se) que elege os seus “matáveis” e faz dos homens de farda — na maioria das vezes também negros e pobres — meros instrumentos; a ponta da lança empunhada pelos homens diplomados que ocupam a posição respeitável de “fiscais da lei”.
André Damiani é sócio-fundador do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GV-LAW).
Diego Henrique é advogado associado ao escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Compliance.
Foto: Reprodução