Por Jéssica Frata
Com o aumento da presença da Internet em nossas vidas, tornou-se questão significativa a chamada herança digital – bens virtuais que uma pessoa deixa após a morte, como contas e perfis de mídias sociais, e-mails, arquivos armazenados em nuvem, fotos, vídeos, criptomoedas, NFTs, milhas aéreas, senhas, acessos a programas de pontos e outros.
Um dos principais desafios da herança digital é o acesso a esses bens após o falecimento do proprietário, que, na maioria dos casos, só pode ser feito por meio de senhas e outras medidas de segurança desconhecidas dos herdeiros. Além disso, ainda não há legislação específica que regule esse tipo de herança, e as disposições gerais sobre o direito das sucessões, muitas vezes, não são suficientes para suprir essa lacuna legal, ficando os casos concretos à mercê da interpretação de cada juiz.
Resistência das plataformas
Vários casos recentes demonstraram a importância e a complexidade do tema. No Brasil, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu o direito de uma mãe ao patrimônio digital de sua filha falecida. Apesar da inexistência de regulamentação específica, o Tribunal decidiu que o patrimônio digital pode integrar o espólio e ser objeto da sucessão.
Nos EUA, uma mãe enfrentou uma longa batalha legal para acessar a conta do Facebook de sua filha falecida. Inicialmente, a plataforma negou o acesso, citando leis de privacidade. Somente após uma decisão judicial, a mãe obteve acesso às informações.
Na Europa, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) estabelece regras claras sobre o acesso aos bens digitais após a morte, permitindo que indivíduos escolham um herdeiro para acessar seus dados e exigindo que empresas de tecnologia forneçam meios para esse acesso.
Avanços do novo Código Civil brasileiro
Para abordar as lacunas legais e os desafios atuais, o anteprojeto de reforma do Código Civil brasileiro entregue ao Senado Federal em abril tem um capítulo dedicado à herança digital, com definições e diretrizes específicas para a sucessão de bens virtuais. Destaque para:
- Definição de bens digitais: o anteprojeto define claramente o que são bens digitais e quais podem ser herdados;
- Disposição em testamento: permite que a pessoa estabeleça em testamento como seus bens digitais devem ser tratados após sua morte;
- Exclusão de perfis: autoriza representantes legais ou herdeiros a solicitar a exclusão de perfis em redes sociais, salvo vontade contrária expressa pelo falecido. Alternativamente, os perfis podem ser transformados em memoriais;
- Tratamento de mensagens: estabelece que mensagens privadas não podem ser acessadas pelos herdeiros, a menos que haja autorização expressa do falecido ou decisão judicial.
As mudanças propostas visam a trazer clareza e segurança jurídica para a herança digital, oferecendo diversos benefícios, como evitar interpretações divergentes nos tribunais e garantir um tratamento uniforme; respeitar a vontade do falecido, ao permitir a definição do destino dos bens digitais em testamento; proteger a privacidade, ao excluir mensagens privadas do acesso automático pelos herdeiros, e simplificar a administração da herança digital com regras claras, beneficiando herdeiros e administradores de espólios.
A inclusão da herança digital no novo Código Civil representa um avanço significativo na legislação brasileira. Ao reconhecer e regulamentar esses bens, a proposta preenche uma lacuna legal importante e adapta-se à realidade digital contemporânea. Garantir que os bens digitais sejam tratados com a devida importância e respeito na hora da sucessão é fundamental para proteger os direitos dos herdeiros e a memória do falecido.
Jéssica Frata é especialista em Direito Processual Civil e sócia do escritório Antonio de Pádua Soubhie Nogueira.