Opinião

Fintechs não dispensam numerário

Acesso a dinheiro físico é fator determinante para que usuário opte por determinada fintech

21 de outubro de 2021

Raphael Ribeiro/BCB

Por Luiza Veronese Lacava, Mariana Chaimovich e Theófilo Miguel de Aquino*

Artigo publicado originalmente no Jota

A digitalização de serviços bancários, a maior abrangência do internetbanking e a diversificação de empresas de inovação com uso intenso de tecnologia no campo financeiro – as fintechs – marcaram as últimas décadas em âmbito global, e alteraram de forma significativa a relação entre cidadãos e dinheiro. Como é comum a todas as mudanças sociais profundas, a digitalização dos meios de pagamento e o ingresso desses novos atores estão inseridos em contextos sociais, culturais e econômicos pré-existentes, o que impõe ritmos distintos e particulares para essa transição.

Realizamos pesquisa empírica para compreender de que maneira as fintechs inovam em serviços normalmente associados a instituições financeiras tradicionais. Enfatizamos o modelo de negócios utilizado por elas para disponibilizar dinheiro “vivo” para seus clientes. Após discutir a diversificação recente dos meios digitais de pagamento no Brasil, as mudanças trazidas pela pandemia de COVID-19, e pesquisar sobre o papel do dinheiro nesse contexto, concluímos que, mesmo que muitas fintechs possuam modelo de fato disruptivo e que promete experiência integralmente digital, sua operação ainda depende fortemente da oferta de serviço de saque.

Em um país como o Brasil, com dimensões continentais, alta desigualdade regional, econômica, de gênero e etária; com entraves de infraestrutura e história econômica marcada por períodos de crise e hiperinflação, o ingresso das fintechs se dá de maneira especialmente particular. No nosso contexto, o dinheiro em espécie ainda é o principal meio de pagamento, sendo o mais utilizado por 44% da população, percentual que aumenta para 65% se consideradas apenas as classes D e E. Em 2021, a população desbancarizada totaliza 34 milhões de pessoas, ou 21% da população adulta.

Houve aumento do uso de tecnologias e de meios de pagamento digitais durante a pandemia de COVID-19, e, em especial, houve reforço da tendência de aumento do uso de mobile banking, ou serviços financeiros pelo celular. Segundo dados do Instituto Locomotiva publicados em 2020, as compras realizadas pelo celular teriam aumentado 30% no primeiro mês de pandemia, e a maior alta teria sido observada entre a população com menor experiência no uso da internet: pessoas com mais de 50 anos de idade, e consumidores das classes C, D e E.

Entretanto, também é fato que aumentou a circulação e a demanda por dinheiro em espécie no mesmo período. Segundo dados do Banco Central (BC), o volume de dinheiro em circulação cresceu exponencialmente: enquanto em dezembro de 2019 havia 280 bilhões de cédulas em circulação, ao fim de 2020 a quantidade aumentou para 370 bilhões de cédulas. As razões apontadas para este fato são o fenômeno do entesouramento, ou guarda de dinheiro em casa em momentos de crise, e também os programas de transferência direta de renda pelo governo federal, como o auxílio emergencial para famílias afetadas pela pandemia.

Foi realizada pesquisa empírica para compreender o modelo de negócio e entender como os novos atores – fintechs — se posicionam neste cenário. Os resultados, detalhados a seguir, têm como foco principal a busca por aplicativos de serviços financeiros disponíveis para download ao público brasileiro, via Google Play Store. Essa base foi recortada para conter somente serviços de contas digitais, para que fosse possível analisar em que medida os serviços prestados por esses novos atores inovam o modelo de negócios de instituições já estabelecidas no que tange sua relação com numerário. Esta busca trouxe 250 resultados.

Foi feita varredura nos termos de descrição dos aplicativos na própria loja de aplicativos virtuais pelos termos (i) saque (136 ocorrências), sendo que sete delas se referiam à empresa Saque & Pague; e (ii) sacar (27 ocorrências). Um total de 88 dos 235 aplicativos selecionados, ou 37%, traziam menção à possibilidade de realizar saques. É importante destacar que esse número se refere apenas aos serviços que as fintechs escolhem explicitar no aplicativo, Ou seja, o número real de empresas que permitem o saque de dinheiro em espécie é potencialmente maior.

Após a leitura cuidadosa das descrições, foi possível estabelecer categorias para agrupar os aplicativos selecionados. A primeira categoria diz respeito às alternativas físicas de saque de dinheiro. É importante considerar que o mesmo aplicativo podia prever o saque em redes ou locais distintos. Dos aplicativos selecionados, 53 mencionavam a possibilidade de saque na Rede Banco24Horas, enquanto 7 permitiam saques na Rede Saque e Pague.

Em apenas um dos resultados encontrados era permitido o saque exclusivamente nesta última Rede. Número menor, mas expressivo, de aplicativos menciona a possibilidade de saque em lojas, ATMs ou totens próprios (12) ou em lotéricas (8). Dentre as instituições que preveem totens ou ATMs próprios, a metade delas permite, simultaneamente, o saque na Rede Banco24Horas.

Além disso, avaliou-se, em uma segunda categoria, a previsão expressa de tarifas ou de gratuidade para a realização de saques. Essa avaliação culminou em apenas dois aplicativos com menção expressa de tarifas para realizar saques, e 12 menções expressas à gratuidade de saques. A quantidade de saques gratuitos varia, existindo aplicativos que mencionam a permissão de até dois saques grátis por mês.

Vale lembrar que, por meio da Resolução nº 3.919/2010, o Banco Central obriga instituições financeiras e demais instituições autorizadas por ele a funcionar a ofertarem, no mínimo, quatro saques gratuitos por mês a seus clientes em caixas e terminais de autoatendimento. Por si só, essa informação demonstra a relevância do papel-moeda como meio de pagamento no país. Entretanto, é importante observar que, atualmente, fintechs e contas digitais estão em diferentes estágios de regulação, de modo que nem todas são obrigadas a ofertarem a seus clientes os quatro saques grátis.

A terceira categoria avaliada diz respeito às alternativas de saque: foi analisada, particularmente, a menção ao chamado “saque digital”, ou seja, a possibilidade de realizar saque sem cartão físico, com um total de 12 aplicativos.
Além das categorias elencadas acima, foram encontradas menções a características que nos pareceram interessantes: chamou a atenção a menção a saques ilimitados, algo que não é uma praxe adotada pelo mercado de instituições financeiras em geral, ou mesmo a previsão de quantidade elevada de saques (até 30).

Apesar de o saque não ser necessariamente mencionado nas descrições dos aplicativos das fintechs pesquisadas, averiguou-se que de fato existem aquelas que incentivam o acesso de seus usuários a dinheiro em espécie em seus sites. Embora as fintechs possam preferir ressaltar aspectos que parecem mais intimamente ligados à tecnologia do que ao dinheiro em espécie, é necessário considerar que o acesso a dinheiro é, muitas vezes, imprescindível para que o usuário decida por determinada plataforma.

Ainda mais relevante é perceber que muitos dos atores analisados vão além da oferta do mínimo de quatro saques gratuitos, considerando as fintechs que possuem, e as que não possuem essa obrigatoriedade. Essa evidência sugere que as fintechs não observam a disponibilização de numerário como simples ônus imposto pelo regulador, mas como diferencial do seu negócio, capaz de atrair e fidelizar novos clientes.

Para ofertar esse serviço, existem métodos distintos. Há fintechs que se preocupam em ter estruturas próprias, e aquelas que utilizam as estruturas estabelecidas por empresas parceiras para fazê-lo. Neste caso, a capacidade previamente instalada de determinadas redes de caixas eletrônicos aparece como escolha da grande maioria de empresas. Percebe-se também que a experimentação com modelos de acesso a numerário atinge fintechs de diferentes origens.

A tipologia de atores inovadores do setor financeiro brasileiro é perpassada pela necessidade de atentar ao contexto em que tais inovações acontecem. Conforme visto, o papel-moeda ainda é o principal meio de pagamento no Brasil e as fintechs analisadas parecem atentas a esse dado.

Ainda que possa haver o desejo de digitalizar por completo o ecossistema de pagamentos, a análise contextual dessas empresas evidencia que negócios digitais ainda precisam “conversar” com pagamentos físicos no cenário brasileiro.

Luiza Veronese Lacava, mestranda em direito e desenvolvimento pela FGV Direito SP, é consultora em relações governamentais do ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário).

Mariana Chaimovich, advogada, legal advisor do Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo do Numerário (ITCN), mestre e doutora pela USP.

Theófilo Miguel de Aquino, doutorando em direito e desenvolvimento pela FGV Direito SP, mestre pela mesma instituição, é consultor em relações governamentais do ITCN.

 

Foto: Raphael Ribeiro/BCB

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