*Por Waleska Miguel Batista
No Brasil, historicamente, as mulheres negras têm menos oportunidades do que qualquer outro grupo na sociedade. Importante destacar que as mulheres negras sempre estiveram no mercado de trabalho, ora como escravizadas, atuando tanto como trabalhadoras da lavoura ou como domésticas responsáveis pelos cuidados da casa e dos filhos dos senhores; a seguir, como trabalhadoras domésticas; e atualmente, além de continuarem como empregadas domésticas, também atuam como cuidadoras de crianças e de idosos, técnicas de enfermagem e “tias” nas creches.
Por outro lado, historicamente, as mulheres brancas de baixa renda foram recrutadas para os trabalhos externos com as crises econômicas, com a finalidade de auxiliarem no rendimento familiar. Desse modo, algumas dessas mulheres brancas de baixa renda atuaram como secretárias e recepcionistas, ou seja, serviços burocráticos, que implicam acesso com o público. A situação delas é diferente da enfrentada pelas mulheres negras, que, por causa do racismo, foram destinadas aos trabalhos de âmbito privado, de modo que não fossem representantes da imagem da empresa.
Apesar disso, importante destacar, todas as mulheres compartilham o fato de sofrerem discriminação por serem mulheres. A partir disso, podemos observar causas acumulativas de opressão pela cor, orientação sexual, classe, religião, entre outras. Porém, o imaginário, constituído socialmente, que determinou e hierarquizou atividades de mulheres brancas e mulheres negras, foi um mecanismo de preservar a ideia de que o amor seria a recompensa pela atividade desenvolvida. É aquela antiga concepção de que “a mulher nasce propensa aos cuidados” ou “que a mulher faz tudo por amor” ou, direcionando-se à mulher que acumula várias atividades que “as mulheres conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo”. Estas assertivas são falácias naturalizadas e, infelizmente, normalizadas.
De acordo com essa percepção, quando uma mulher limpa a casa e deixa a comida pronta para a família, ela estaria fazendo isso porque ama a todos, de modo que não carece de remuneração. Da mesma forma, a mulher que organiza a vida de seus chefes com agendamentos, reuniões e, invariavelmente, serviços administrativos pessoais que estão fora do escopo de sua atuação. Estas também são formas de cuidado, e uma atividade atribuída majoritariamente às mulheres. Questiono: Quantos homens secretários vocês conhecem? Quantos cerimonialistas (pessoas que organizam, acompanham e designam os andamentos de eventos) masculinos vocês conhecem?
Apesar da importância de todas essas funções, os dados revelam uma disparidade salarial das funções de cuidado em comparação com outras atividades laborais. Se for realizado o filtro pelo recorte racial, há outra evidência de desigualdade e de discriminação.
Sabe-se que os trabalhos domésticos remunerados são exercidos majoritariamente por mulheres. Em 2022, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que as mulheres representam 91,4% da categoria, enquanto os homens respondem por 8,6%. No mesmo ano, as trabalhadoras negras representavam 67,3% do total de mulheres da categoria, e as não negras, apenas 32,7%. Estas mulheres tinham o rendimento médio de R$ 1.051 no 4º trimestre de 2022. A pesquisa do Conselho Federal de Enfermagem, divulgada em 2015, revelou que a profissão de enfermagem é majoritariamente feminina, contando com 84,6% de mulheres.[1]
Apesar de esses dados evidenciarem que as mulheres trabalham em funções de cuidado com representatividade superior à dos homens, elas também acumulam as atividades de cuidado doméstico. Estas, em regra, sequer são reconhecidas como trabalho, pois não seriam motores do capital.
Interessante observar que as mulheres abastadas acabam cumulando a atribuição de supervisionar e orientar os trabalhos domésticos realizados por outras pessoas contratadas. Ou seja, as atividades da cuidadora ou da trabalhadora doméstica são definidas por outra mulher, em condição de gestão. O sexismo atravessa as barreiras da classe, e mais uma vez, essa gestão do lar ou até o acúmulo de trabalho externo com o trabalho em seu domicílio é parte estruturante da reprodução da desigualdade.
Constata-se que a estrutura da nossa sociedade é sexista e racista sobre o valor atribuído às funções exercidas pelos homens e as exercidas pelas mulheres. As atividades atribuídas aos homens são valoradas, enquanto as das mulheres e meninas não o são. Esta estrutura faz com que o acúmulo de riqueza pelos homens seja superior ao amealhado pelas mulheres.
Dado da Oxfam (Oxford Committee for Famine Relief ou Comitê de Oxford para o Alívio da Fome) apontou que mulheres e meninas dedicam gratuitamente 12,5 milhões de horas todos os dias ao trabalho de cuidado, e que esse trabalho agrega pelo menos US$ 10,8 trilhões à economia, isso sem considerar as subnotificações de informações sobre essas realidades de trabalho. Este número é três vezes maior do que o estimado para o setor de tecnologia, no mundo.
Em que pese o elevado valor apontado, os benefícios dessas atividades retornam para os mais ricos, que são majoritariamente homens brancos. Ainda de acordo com a Oxfam, o 1% mais rico do mundo detém mais que o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas, e que os 22 homens mais ricos do mundo detêm mais riqueza do que todas as mulheres que vivem na África (continente com 55 países).
A questão abordada, para além de remunerar as mulheres pelos trabalhos de cuidado, deve alcançar o debate de enfrentamento da divisão sexual do trabalho. Não basta atribuir atividades de âmbito privado e de cuidado às mulheres e não aos homens. As funções de higiene, de alimentação e até de educação dos filhos devem ser compartilhadas, visto que são igualmente importantes para a formação das gerações presentes e futuras.
Desde 2015, o Brasil adotou os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), a serem atingidos até 2030. Conforme o ODS 5 — alcançar a Igualdade de gênero —, é fundamental “reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais”. A economia do cuidado é um ciclo econômico que deve ser cada vez mais observado por motivos de saúde pública, igualdade de gênero e trabalho decente.
Desta forma, deve-se repensar as práticas educacionais no sentido de que todas as crianças precisam ser incentivadas a preparar o próprio alimento, cuidar da casa e do próximo. Como afirma Chimamanda N. Adiche, escritora e ativista, “se sua filha volta da escola dizendo que bonecas são para meninas e carrinhos, para meninos, isso é um problema”.[2] A autora também pondera, que, se a alimentação é essencial para todas as pessoas, com certeza, os homens devem saber preparar suas próprias refeições.
Portanto, não se deve ter desprezo pelas atividades de cuidado ou desvalorizá-las, para evitar o aumento da desigualdade. Devemos alcançar as lutas em favor da igualdade racial e de gênero, ou seja, assumir a posição proativa e contrária às formas de reprodução dessa exploração.
[1] Confen. Pesquisa inédita traça perfil da enfermagem 06/05/2015. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/pesquisa-inedita-traca-perfil-da-enfermagem_31258.html. Acesso em: 17 maio 2023.
[2] ADICHE, Chimamanda N. Roda viva. Entrevista em 14/06/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pxe92zWOotE. Acesso em: 17 maio 2023.
Waleska Miguel Batista – advogada, professora da Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp), consultora de relações governamentais do Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário (ITCN). Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestra em Sustentabilidade e graduada em Direito pela PUC-Campinas. Integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro (CNPq) e advogada-orientadora do Núcleo de Ensino Clínico em Direitos Humanos da PUC-Campinas. Conselheira do Instituto Luiz Gama