Opinião

Estado deve assumir responsabilidade por restrições de atividades

Juízes precisam considerar o artigo 486 da CLT nos julgamentos

Por Sebastião Tavares Pereira

Artigo publicado originalmente no Estadão

Por razões de ordem constitucional, lógica, jurídico-sistêmica e fática, os juízes do trabalho precisam considerar, nos seus julgamentos, a regra do artigo 486/CLT. O artigo tem redação clara, direta e conecta incondicionalmente certo fato com suas consequências. Veja-se: “No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”. O direito do trabalhador à indenização prevalece, ainda que o estabelecimento tenha sido fechado por ato de autoridade, mas o empregador fica isento dessa responsabilidade que deve ser cumprida pela autoridade que determinou o fechamento. Nada fala o legislador sobre as motivações da autoridade.

Examinam-se adiante as razões pelas quais os juízes do trabalho precisam considerar (não se diz aplicar) este artigo na construção de suas decisões.

Razão constitucional. Tem de ser repudiada a tentativa inconstitucional, contida no artigo 1º parágrafo único, in fine, da MP 927/2020, de invadir o espaço de competência estrita do Poder Judiciário e vedar a aplicação do artigo 486/CLT. A MP não se converteu em lei. Caducou em 19 de julho. Se não sobrevier um decreto legislativo, disciplinará as relações nela baseadas. Mas deixa um legado inaceitável de interferência do legislador extraordinário na função jurisdicional e os juízes do trabalho deveriam defender suas prerrogativas.

A inconstitucionalidade do final do parágrafo único do artigo 1º é evidente. Determina que a pandemia seja considerada, para fins trabalhistas, como “hipótese de força maior, nos termos do disposto no  art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho ”. Sutil mas eficaz, a disposição inconstitucional invadiu a competência dos juízes e está na base de uma postura generalizada de rejeição da aplicação do artigo 486 da CLT (factum principis). Quem considera o fato e, à luz do ordenamento jurídico vigente, constrói a norma para o caso concreto (linguajar de Hans Kelsen 1 ) é o juiz. Em todos os ordenamentos democrático-constitucionais de direito é assim.

Conformar abstratamente a ordem jurídica é papel do legislador. Fixar o sentido das proposições legislativas com o qual o caso concreto será solucionado é função do Poder Judiciário, consideradas todas as perístases da situação analisada. Como preleciona Belmonte, força maior é a expressão gênero, usada na CLT, para referir três espécies distintas: força maior estrita, caso fortuito e o factum principis: “Os arts. 501 a 504 da CLT versam sobre as duas primeiras hipóteses. A terceira recebe regramento diferenciado, a teor do art. 486 da CLT.”

Todos os dispositivos estão em vigor. E só o juiz, no ato decisório do caso concreto, pode optar pela aplicação de um deles para resolver o litígio. O legislador poderia ter revogado o artigo 486 e estaria atuando na sua órbita de poder. Mas não pode fazer, pelo juiz, a seleção da proposição legislativa a ser usada para aplicação. É inconstitucional essa tentativa de fazer o juiz não considerar norma geral vigente. Os juízes do trabalho poderão, no esforço decisório, optar pela aplicação ou não do aludido artigo à situação apreciada. Mas só o juiz pode fazer isso. O juiz boca da lei, de origem imperial romana, muito bem descrito por Montesquieu e duramente combatido no Estado moderno, estava sepultado até renascer na versão tupiniquim da MP.

A relevância do ponto justifica repetir: é vedado ao legislador proceder à subsunção de um fato a determinada norma geral, ou seja, estabelecer a norma jurídica do caso concreto. Posto o fato e consideradas as perístases da situação (Klaus Gunther ), o julgador, frente às diferentes hipóteses vigentes de norma geral e dos muitos sentidos possíveis, constrói a regra para o caso concreto. Só neste momento, por mãos judiciais, nasce a norma jurídica expressa numa sentença. Essa é a noção de norma jurídica legada por Hans Kelsen e considerada irrenunciável até os dias atuais.

Uma coisa é, genérica e abstratamente, descrever um fato e ligar a ele uma conseqüência. Essa é a função do legislador que traça horizontes de sentido (Niklas Luhmann ) a serem considerados no ato de julgar. E é isso que o legislador fez no artigo 486/CLT com absoluta clareza.

Há, no caso da MP, uma tentativa de proibição de interpretação que é a essência vivificadora do trabalho do julgador. O juiz boca da lei nasceu com os imperadores romanos e quase ressurgiu nas pranchetas dos exegetas, dezessete séculos depois. Mas estava sepultado com a derradeira pá de cal posta por Hebert Hart 5 e sua teoria da textura aberta, oitenta anos atrás. Séculos de prática jurídica evidenciaram a impossibilidade de previsão das contingências do mundo, as limitações da linguagem para exprimir tudo o que se deseja, a mutação permanente da realidade e a crença de que sem contextualização não se aplica imparcialmente a lei.

Portanto, há um vício de inconstitucionalidade no condicionamento que o legislador extraordinário (o Executivo) tentou pela via torta do artigo 1º, parágrafo único, da MP 927/2020. Os juízes do trabalho precisam repudiar essa invasão de suas prerrogativas, porque é inconstitucional, e considerar seriamente a vigente norma da CLT, do artigo 486, ao apreciar as rescisões de contrato de trabalho decorrentes das dificuldades da pandemia.

Razão jurídico-hermenêutica. O artigo 486 é incondicionado. O legislador assentou claramente, desde 1943, que se o estabelecimento for fechado por determinação do poder público, este se subsume na obrigação de indenizar os empregados pelo fim dos contratos de trabalho. Não se perquire sobre as causas do ato de império. A regra só não se aplica se o atingido tornou necessário o ato do Estado. Afinal, ninguém se pode beneficiar da própria torpeza (princípio geral do Direito).

Razão sistêmica 1. O procedimento judicial é um sistema funcional diferenciado para, com operações próprias (fechamento operativo e máxima autonomia – Niklas Luhmann ), entregar a norma do caso concreto. A diferenciação funcional dos sistemas sociais faz parte das modernas sociedades democráticas e exprime um conjunto de valores e crenças que norteiam toda a vida das pessoas. Ela garante e exige que os papeis sejam respeitados estritamente.

É vedado ao legislador interferir internamente no outro sistema, o de aplicação da lei, e violar suas estruturas operativas. O devido processo legal é a expressão sintética do instrumento de adjudicação do Direito utilizado pelo poder judiciário e só por ele. Não há legitimidade para a imposição de qualquer decisão estatal nascida fora dessas balizas.

Isso é sistêmico-organizacional.

Repiso: se alguém pode dizer se aplicará ou não o artigo 486/CLT ao caso concreto é o juiz, dentro de um procedimento (devido processo legal), fundamentadamente, pela via de uma sentença. Ninguém, nem mesmo o legislador extraordinário, pode proibir o juiz de aplicar, no julgamento, certa proposição legislativa vigente ou, o que é mesmo, dizer ao juiz com qual das vigentes normas gerais, abstratamente tomadas, deve julgar o caso.

Essa interferência de um sistema funcional na operação do outro deslegitima o todo e destrói a segurança jurídica.

Legislar é legislar e julgar é julgar. A subsunção de um fato a determinada regra legal para fixar o sentido normativo (a norma) que se lhe aplica é função estrita do juiz. Uma função, aliás, que deve ser acionada e retornar um resultado, ainda que o legislador tenha sido omisso ou imprevidente ou superado pelas mutações do real.

Razão sistêmica 2. O direito do trabalho é protetivo. Este é o axioma do qual parte a organização do subsistema jurídico do mundo do trabalho nas democracias reais. A graduação do nível de proteção depende do regime jurídico objetivamente adotado. Mas é impossível imaginar um sistema de direito do trabalho sem a característica de proteção ao trabalhador.

Essa ótica, aliás, calcada no desbalanceamento das relações, migrou do mundo do trabalho e revolucionou a organização de outros subsistemas jurídicos mais atuais como o do consumidor e o da previdência social. Qualquer manobra para interferir na operação do sistema, sob esta ótica sistêmico-teleológica, e esvaziar o nível de proteção ao trabalhador, fixado explicitamente na ordem normativa em vigor, deve ser rejeitada.

Eximir o Estado, ab initio, das obrigações direta, objetiva e incondicionalmente estabelecidas no artigo 486/CLT, significa enfraquecer as garantias protetivas sistêmicas instituídas em prol do trabalhador. Deixar o empregado sem cobertura, nos casos em que o empregador, impactado pelo infortúnio da pandemia, não pode adimplir obrigações de indenizar o rompimento do contrato significa piorar a proteção e não ampliá-la. A afronta ao sistema do Direito do Trabalho é evidente.

Razão sistêmica 3. O enfoque sistêmico geral do Direito também é claramente violado quando o juiz é forçado a desviar o olhar de norma vigente relacionada expressamente ao fato em consideração. O vetusto adágio exprime essa diretriz: da mihi factum, dabo tibi jus. Ele é antigo, direto, evidente e muito adequado ao caso. O papel de efetuar a subsunção do fato à regra não é uma incumbência reivindicada agora pelo Direito, muito menos pelo Direito do Trabalho ou por seus juízes. Essa é a base funcionalmente estabelecida, nos sistemas jurídicos sérios, que sintetiza a prerrogativa dos juízes. Não há ideologia nisso. Há ciência organizativa e sistêmica para lidar com a complexidade
crescente das sociedades atuais. E a regra sistêmica precisa ser radicalizada e não afrouxada na presente quadra de complexificação das relações sociais.

A tentativa explícita de condicionamento da mens julgatoris, contida na MP, para eximir o Estado da obrigação de indenizar os trabalhadores cujos contratos foram abruptamente rompidos por atos de autoridade, viola também o sistema jurídico geral na sua divisão básica de papéis. Ainda que a tentativa tivesse nascido na casa legislativa, representaria uma violação das premissas constitucionais que organizam o Estado brasileiro.

Razão lógico-jurídica 1. Se a razão (causa) do ato de fechamento dos estabelecimentos tem força para exonerar o Estado, impedindo a aplicação de artigo claro, direto e incondicionado da CLT, deve ter também força para exonerar o empregador. Aliás, foi exatamente isso que o legislador fez ao enunciar aquele texto normativo geral: declarou a continuidade de existência do direito à indenização do empregado (prevalecerá, diz ele) e redirecionou a linha de responsabilidade para o Estado, eximindo o empregador. Sem qualquer condicionante da conexão causal fato x conseqüência.

Os que argumentam contra a aplicação do artigo 486/CLT, pela ocorrência da pandemia, esboçam uma linha interessante de discurso: diante dos “atos de Deus”, dizem eles, não há como responsabilizar o Estado. E o empregador, há? Muitos respondem com o princípio “dos riscos do negócio”, sempre tão expressivo no mundo do trabalho. Há muitas considerações a fazer sobre esse argumento.

O artigo 486 é norma válida e o aplicador deve promover sua máxima eficácia. O esvaziamento da lei na aplicação é antijurídico. Ora, no ordenamento jurídico, a teoria da responsabilidade objetiva é aplicada genericamente e incondicionalmente ao Estado e só excepcionalmente ao privado. O Estado sempre responde pelos seus atos, tenha ou não agido com a intenção de provocar o dano. Afastadas as circunstâncias exceptivas, em geral ligadas ao papel do atingido na provocação do ato do Estado, basta provar o nexo causal sem outras perquirições. No mundo privado, a regra se inverte. O nexo é importante, sempre, mas só excepcionalmente não se perquire sobre a culpa. É o caso, por exemplo, em que o risco é inerente à atividade.

A dispensa do empregado decorrente da imposição do Estado para fechar as portas não se enquadra em hipótese de risco minimamente razoável para iniciar um racional de imposição da obrigação de indenizar ao empregador. Isso é exatamente o que o artigo 486/CLT diz.

O empregador está sempre jungido à famosa regra dos “riscos do negócio”, mas diante do ato de império, não! O desenvolvimento tecnológico, a concorrência de quem tem maior poder econômico, os erros de administração/gestão, os desatinos do sistema econômico, a imprevidência, o jogo negocial, tudo se insere no rol dos riscos do negócio. Mas essa responsabilidade frente aos cenários contingenciais do mundo encontra uma exceção explícita na lei: a do artigo 486/CLT. Diante de atos de império, que sempre devem ser norteados pelo interesse coletivo (sempre!), a regra da assunção dos riscos é quebrada. O empregado continua a merecer a proteção da lei (seu direito a eventual indenização prevalecerá), o empregador é eximido de qualquer obrigação de indenizar e o Estado agente subsume-se na responsabilidade de adimplir aqueles direitos.

Razão lógico-jurídica 2. Alguns, para reforçar o argumento anterior, dizem que a ação do Estado está fundada no interesse social. E quando é que o Estado está autorizado a agir sem que se fundamente no interesse social? Todas as ações do Estado são legitimadas por algum interesse social. Sem interesse social, toda ação do Estado é ilegal. Esta linha argumentativa, portanto, é frágil, para não dizer inviável. O que pode haver é certa gradação dos interesses segundo as prioridades (discricionariedade do decisor). Mas a ausência de interesse não é aceitável. E, se o interesse sempre é exigido, não se pode fundamentar a isenção do Estado pela presença de interesse. O artigo 486/CLT afasta e, pode-se dizer, desautoriza tais considerações.

Razão fática 1. Argumenta-se que não houve discricionariedade do administrador para determinar o fechamento. Como afirmar isso diante da imensidão da discórdia que cercou a tomada de decisões administrativas e legais acerca da pandemia? Da OMS ao prefeito do menor município do Brasil, o administrador sempre esteve à frente para, conforme suas considerações e apreciação da situação, determinar ou não as restrições de atividade que, a seu juízo, eram necessárias para a disseminação do contágio. Chegou-se a judicializar a questão para definir quem poderia, e em que extensão, determinar as medidas. Dentro da própria União jamais se chegou a um acordo a respeito da oportunidade e da necessidade dos fechamentos e isolamentos. Trocaram-se ministros, foi-se e voltou-se nas orientações, o presidente dizia A e o ministro dizia B. A máscara era eficaz e não era eficaz. Só ir ao médico quando estivesse sentindo a morte próxima ou ir logo aos primeiros sintomas.

Testar só na porta da UTI ou testar massivamente, na rua, inclusive os sem sintomas. Isolar a todos ou só aos de risco. Isolar mais adiante ou no início. Um metro e meio protege das gotículas. Não, num ambiente fechado o distanciamento social é inócuo. Os estados do norte têm suas curvas de morte declinantes enquanto os avançadinhos do sul, que se anteciparam nos fechamentos, estão vendo as curvas irem na direção do céu.

A inocuidade ou não das medidas é algo que só com o tempo, talvez, a ciência poderá demonstrar. Recomendou-se, voltou-se atrás na recomendação, provou-se o malefício da primeira recomendação, ou a insuficiência da segunda. Enfim, numa cadeia sem fim de ações, o Estado meteu-se nas relações jurídicas trabalhador x empregador assumindo abertamente os riscos de errar, como de fato muitas vezes errou (é o que mais se houve atualmente), e de acertar (o que terá de ser aferido com o tempo). Os quase oitenta mil mortos até agora apontam para muitos erros e para a ineficácia das medidas. Não se pode assumir, então, argumentativamente, para eximir o Estado de suas responsabilidades postas no artigo 486/CLT, que foi obrigado a agir.

Razão fática 2. Sempre se argumentou que os fechamentos eram necessários para o achatamento da curva de contágio: conciliar demanda com capacidade de atendimento. Parece haver unanimidade neste entendimento. O contágio não poderia ocorrer em velocidade que gerasse demanda hospitalar superior à capacidade instalada de atendimento. Logo, sob essa ótica, todas as medidas de contenção da disseminação da Covid foram conscientemente tomadas para resolver um problema de incapacidade do Estado. Sua rede de saúde era subdimensionada.

Ora, as pandemias têm vindo e ido, com regular frequência. Os exemplos dos últimos anos apontavam claramente para a possibilidade da ocorrência de nova pandemia e, inclusive, já se prognosticam outras, no futuro. Perguntar o porquê do subdimensionamento da estrutura de saúde dos municípios, Estados e da União, parece uma busca do irrespondível, admite-se. Das malversações de recursos ao descaso com a gestão e com exercícios preditivos, tudo se conjuga nas explicações. Explica, mas não justifica.

O Estado tem de assumir a responsabilidade pelos necessários atos restritivos das atividades empresariais, nos limites do artigo 486/CLT. A liberação do Estado e a responsabilização dos empregadores pelas indenizações desatende a lei. Como dito, se houve imprevidência, foi do Estado. E a posição do Estado, posta no artigo 486/CLT, de arcar com as conseqüências de seus atos, sem análise de culpa, fica piorada quando se procede a esse exame.

*Sebastião Tavares Pereira é mestre em Ciência Jurídica e pós-graduado em Direito Processual Civil, juiz aposentado do TRT-12 e diretor da ABMT (Associação Brasileira dos Magistrados do Trabalho).

 

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