Por Ademir Antonio Pereira Jr., Yan Villela Vieira e Maria Eduarda Scott*
Artigo publicado originalmente na ConJur
A regulação da indústria de alimentos e bebidas vem passando por transformações ao longo das últimas décadas. As primeiras regulações tinham como preocupação central enfrentar o problema da escassez de alimentos, implementando reformas voltadas ao aumento da produção agrícola e da eficiência na distribuição de alimentos em centros urbanos. Embora esse ainda seja um desafio (especialmente do ponto de vista distributivo), novos objetivos foram adicionados à pauta da regulação, tais como preocupações sanitárias relacionadas ao processo produtivo e ao controle de qualidade mais rígidos. Mais recentemente, têm ganhado destaque medidas que buscam promover uma difusão maior de informações sobre a qualidade dos alimentos e seus impactos sobre a saúde dos consumidores.
Nesse sentido, a regulação deixa de ter como foco central o controle dos processos produtivos e passa a procurar impactar o consumo, limitando e disciplinando iniciativas de propaganda e marketing, de um lado, e procurando ampliar acesso a determinados tipos de informação sobre os produtos, de outro. Em geral, iniciativas que buscam fomentar acesso a informações são baseadas no desenvolvimento de standards que possam ser adotados pela indústria de alimentos e bebidas e sejam facilmente reconhecíveis pelos consumidores.
Um standard pode ser entendido como um padrão de design comum para produtos ou serviços, amplamente adotado pelos agentes de mercado que atuam em determinado setor. Standards podem ser definidos por regulação estatal, iniciativas de grupos de agentes econômicos formados para essa finalidade específica (como no caso de standard-setting organizations, ou organizações que congregam agentes de mercado com a finalidade específica de discutirem e definirem padrões para a indústria) ou mesmo pelo avassalador sucesso de mercado de determinada tecnologia, que se torna amplamente aceita e utilizada (um dos exemplos mais comuns é o do padrão QWERTY para teclados).
Como a promoção à alimentação saudável depende, entre outros mecanismos, da redução da assimetria de informação dos consumidores — ou seja, de garantir que os consumidores estejam bem informados sobre o que estão consumindo —, padrões de design visuais para embalagens que destaquem de maneira simples e direta quais os componentes de cada produto têm sido cada vez mais debatidos e adotados. Nesse sentido, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) criou novas regras sobre a rotulagem de embalagens, estabelecendo um padrão/standard aplicável a toda a indústria de alimentos e bebidas. Sob o novo sistema, que entrará em vigor em 2022, os rótulos de embalagens contarão com um símbolo informativo frontal com um design de lupa para identificar alto teor de açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio.
O sucesso de novas regulações na indústria de alimentos baseados em standards pode, entretanto, ser ameaçado por ações de agentes privados. É nesse contexto que a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) decidiu, em julho, suspender cautelarmente a disponibilização, pelo varejista Carrefour, da ferramenta Nutri Escolha, presente nos apps da rede. Em meados deste ano, meses antes da entrada em vigor das novas regras da Anvisa, o Carrefour lançou no Brasil o Nutri Escolha, ferramenta que atribui notas de A a E a alimentos e bebidas vendidos por sua rede, categorizando-os enquanto produtos “mais equilibrados” (A) e “menos equilibrados” (E). Na prática, a ferramenta compara o produto selecionado pelo consumidor com similares, recomendando opções supostamente mais equilibradas (do ponto de vista nutricional) e mais baratas.
A reação da Senacon ao Nutri Escolha foi rápida porque, entre outras razões, a autoridade logo identificou o potencial da ferramenta ameaçar o sucesso da implementação das novas regras de rotulagem da Anvisa. De fato, para que standards funcionem, é necessário que sejam efetivamente reconhecidos como padrões aplicáveis para determinada classificação de produtos. Para isso, deve haver adequada compreensão de seu funcionamento por parte dos usuários/consumidores e ampla adesão pelos agentes econômicos, sem que haja confusão a respeito do padrão ou do seu significado.
Ao lançar o Nutri Escolha, o Carrefour, maior grupo varejista no Brasil e que que responde por volume expressivo das vendas no varejo de alimentos e bebidas, procura estabelecer um outro standard aplicável às informações sobre alimentos e bebidas. Inicialmente, poder-se-ia argumentar que o maior número de sistemas de classificação de produtos aumentaria o entendimento dos consumidores sobre os produtos. No entanto, essa sobrecarga de informações tenderia, na realidade, a confundir os consumidores e até mesmo levá-los a ignorar por completo quaisquer parâmetros. Isso porque, se houver uma multiplicidade de standards aplicáveis aos alimentos com informações potencialmente conflitantes, dado que se valem de sistemas de classificação distintos, consumidores não saberão por quais parâmetros se guiar. Nesse cenário, a finalidade principal da regulação de um standard para embalagens de alimentos, que é reduzir a assimetria de informações dos consumidores sobre o valor nutricional dos alimentos, seria frustrada.
Assim, não é possível tratar as regras de rotulagem da Anvisa e uma ferramenta privada de ranqueamento de alimentos como complementares; a coexistência de standards distintos é usualmente problemática e capaz de gerar confusão sobre os consumidores, frustrando, assim, os objetivos da edição de standards. O risco da sobrecarga de informações ao consumidor não foi, entretanto, o único problema identificado no Nutri Escolha. Durante o desenvolvimento das novas regras de rotulagem que entrarão em vigor em 2022, a Anvisa avaliou diferentes sistemas de classificação de alimentos e conduziu detalhado Estudo Técnico de Análise de Impacto Regulatório (AIR) que rejeitou alternativas ao sistema adotado por serem inadequadas para a realidade brasileira. Entre as alternativas rejeitadas pela Anvisa após sua análise técnica está o sistema de rotulagem chamado NutriScore, desenvolvido pelo governo francês, que serviria de inspiração para o Nutri Escolha, classificando alimentos similarmente de A a E. Segundo as conclusões da Anvisa, esse sistema seria complexo e incompatível com o Guia Alimentar para a População Brasileira, material publicado pelo Ministério da Saúde desde 2006 com orientações sobre o consumo de alimentos (e que é referência global neste tema). Ou seja, além de potencialmente confundir o consumidor por coexistir com o standard criado pela Anvisa, um modelo semelhante ao standard do Nutri Escolha já havia sido considerado inadequado e descartado pelo regulador.
O conflito entre o standard privado do Nutri Escolha e a regulação da Anvisa também ilustra as complexidades do uso de algoritmos para influenciar decisões de consumidores. Enquanto a ferramenta seria inspirada no sistema NutriScore do governo francês, o algoritmo aplicado no Brasil teria nítidas diferenças em relação ao sistema de rotulagem da França, já que, em especial, faz recomendações ao consumidor não apenas com base no valor nutricional dos alimentos, mas também em seu preço. É crível supor que agentes que detêm poder de mercado no varejo podem se valer de algoritmos que façam as vezes de standards de classificação por valor nutricional para levar consumidores a adquirir produtos mais lucrativos para o agente econômico (como alimentos de marca própria), e não alimentos efetivamente mais saudáveis ou mesmo baratos.
Há, nesse cenário, risco de práticas discriminatórias contra agentes econômicos concorrentes cujos produtos acabem prejudicados pelo standard privado. Soma-se ao risco de discriminação o custo imposto aos agentes econômicos cujos produtos serão ranqueados por diferentes standards — seria exigido de tais agentes o fornecimento constante de múltiplas informações específicas para a geração do parâmetro nutricional tanto para o regulador quanto para agentes privados que criem seus próprios standards. Ou seja, quanto mais standards além do adotado pelo regulador existirem, mais complexo e oneroso será submeter produtos para avaliação e classificação. Com isso, aumentam-se custos de transação e barreiras à entrada no mercado de alimentos e bebidas, reduzindo a concorrência e as opções disponíveis aos consumidores.
O debate sobre a licitude da adoção de um standard privado em conflito com o standard regulatório revela que as autoridades devem ter cautela para que comportamentos de agentes econômicos não prejudiquem a eficácia de medidas regulatórias e acabem por gerar maior confusão entre consumidores, incrementar as barreiras à entrada e reduzir a concorrência existente nos mercados. No caso da indústria de alimentos e bebidas, falhas de mercado como a assimetria informacional dos consumidores podem não apenas prejudicar o mercado, mas a saúde pública.
Dessa forma, a disputa que se dá no caso Nutri Escolha desperta interessante debate sobre a resposta regulatória adequada diante de tentativas de imposição de standards privados, tendo em vista o envolvimento da Senacon, da Anvisa e até do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), convidado pela Senacon a se manifestar sobre o caso. Como para problemas complexos não existem soluções simples, as agências responsáveis pela regulação no Brasil deverão estar prontas para enfrentar problemas dessa natureza de maneira transversal e cooperativa.
Ademir Antonio Pereira Jr. é doutor e mestre em Direito pela USP, mestre em Direito, Ciência e Tecnologia pela Stanford University e membro do escritório Advocacia José Del Chiaro.
Yan Villela Vieira é mestre em Direito pela USP e membro do escritório Advocacia José Del Chiaro.
Maria Eduarda Scott é membro do escritório Advocacia José Del Chiaro.
Foto: Divulgação / Avisa