Por Gláucia Massoni e Alberto de Carvalho*
Artigo publicado originalmente no Estadão
O julgamento das ADI’s 6.586 e 6.587 e do ARE 1.267.879 pelo STF, em dezembro último, fixou a obrigatoriedade — não confundida com vacinação forçada, utilizando-se do Poder de Polícia da administração pública — da imunização por meio de vacina contra a Covid-19, sem que tal obrigatoriedade implique violação da liberdade de credo ou de convicção filosófica. Ficou igualmente decidido que a recusa de se vacinar, conquanto possível e legítima, poderá trazer como consequência a restrição ao exercício de certas atividades ou à presença em determinados lugares, desde que haja previsão legal ou dela decorra.
O assunto é polêmico já que há convicções de cunho filosófico, religioso e até mesmo político, gerando, inclusive, movimentos antivacina. A imunização é questão de interesse coletivo, de saúde pública e seu máximo alcance é essencial ao próprio êxito do processo de erradicação da patologia que a vacinação busca combater. Consequentemente, em se tratando de relação de emprego, trata-se de saúde e segurança do trabalho, cujo ônus de garantia é imputado ao empregador; são garantias de índole constitucional, objetivando a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Muitos entendem que por se tratar de direito coletivo, envolvendo saúde pública e segurança dos trabalhadores, seria possível obrigar a vacinação do empregado, sendo a recusa passível de punição. Há os que pactuam do entendimento de que nos estados ou municípios em que for obrigatória a vacinação, poderia o empregador, com base na legislação estadual ou municipal, exigir a obrigatoriedade da vacinação e em caso de recusa do trabalhador, puni-lo com dispensa, inclusive por justa causa.
Há também quem sustente a possibilidade da dispensa derivada do art. 3º, III, d, da Lei 13.979/2020, quando autoriza a compulsoriedade da vacinação, combinado com o parágrafo único do ar. 158 da CLT, que estabelece como ato faltoso o empregado que se recusa de forma injustificada a colaborar na aplicação dos dispositivos de segurança e medicina do trabalho. Este é o entendimento dos professores Rodolfo Pamplona Filho, Luciano Martinez e Danilo Gaspar.
Contudo, como bem apontou o professor Otávio Calvet, “a conclusão pela justa causa demonstra o risco de adotarmos uma interpretação do Direito com lastro apenas em valores, pois, para se afirmar um deles, rapidamente sacrificamos o outro, e tudo de acordo com a subjetividade do intérprete”.
É fato que, como disposição de natureza sancionadora, que aplica a mais grave pena possível ao empregado, a previsão quanto à dispensa por justa causa não comporta interpretação extensiva. Precisa, ainda, ser absolutamente explícita e prever especificamente a conduta passível de tal punição.
Embora a obrigatoriedade de vacinação pareça ser novidade, a Portaria 0597, de 08/04/2004, já previa a apresentação do cartão de vacinação, no seu art. 5º, como obrigatório, para matricula em pré-escola, creches, alistamento militar, recebimento de benefícios sociais concedidos pelo governo, e, especialmente, “Para efeito de contratação trabalhista, as instituições públicas e privadas deverão exigir a apresentação do comprovante de vacinação, atualizado de acordo com o calendário e faixa etária estabelecidos nos Anexos I, II e III desta Portaria” (art. 5º, §5º).
Por outro lado, importante lembrar que a NR32 — que dispõe apenas para a área de saúde e em face do novo coronavírus talvez precise ser urgentemente atualizada —, ao estabelecer as diretrizes básicas para a implementação de medidas de proteção à segurança e à saúde dos Trabalhadores em Serviços de Saúde submetidos a condições de risco biológico prevê o direito de oposição à campanha de vacinação, desde que o opositor assine um termo de responsabilidade.
Não se pode esquecer que inexiste em nosso ordenamento jurídico fundamento legal, (já que a portaria do Ministério e a NR não possuem força de lei – stricto sensu – como seria necessário à legitimação da pena máxima a ser cominada) e previsão clara que justifique a justa causa nesses casos, ou mesmo dispensa sem justa causa por ausência de vacinação. Tal modalidade de dispensa poderia ser considerada discriminatória. Igualmente, pela reserva legal, apenas a União poderia prever disposição sobre Direito do Trabalho, sob pena de vício de inconstitucionalidade, não cabendo aos Estados e Municípios dispor sobre esta matéria.
Mas poderia, por outro lado, o empregador autorizar que apenas acessem as suas instalações os empregados vacinados? Neste caso, os empregados atuariam em compulsório teletrabalho? Poderiam eles ser dispensados ainda que sem a aplicação da justa causa?
O julgamento do STF acima citado menciona que poderia haver, como consequência da recusa à vacinação, “a restrição ao exercício de certas atividades ou à presença em determinados lugares”. Dentre estes “determinados lugares” poder-se-ia enquadrar a sede da empresa?
É importante levar em conta as peculiaridades da Covid-19, patologia que pode atingir um indivíduo que, sem sintomas, pode infectar todos os seus pares em uma sala, levá-los a quadros graves, com sequelas que talvez os acompanhem por toda a vida, ou mesmo os levem a óbito, silenciosamente, como tem ocorrido de forma mais e mais comum. E a imunização de um grupo (uma cidade, um país) é tão mais eficaz, quanto mais abrangente for o seu espectro de vacinados, podendo mesmo se falar em erradicação da doença quando a abrangência é mais próxima a 100%.
Assim, a obrigatoriedade da vacinação para admissão e manutenção de empregos criaria um grupo de não imunizados desempregados, o que corresponderia a uma vedação ao exercício do direito fundamental ao trabalho.
E como bem se sabe, dispensa discriminatória é proibida em nosso ordenamento jurídico por violar o Princípio da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana, devendo-se ainda mencionar a Lei 9029/95, que proíbe práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho.
Muito embora existam posições defensáveis que sustentam a possibilidade da justa causa com suporte na recusa à vacinação, parece demasiado extensiva a interpretação que lhe dá suporte.
Todavia, a vedação de acesso do empregado à empresa (facultando-se o teletrabalho por medida de proteção aos demais empregados), e mesmo a sua dispensa imotivada (cujo motivo seria naturalmente sabido e vinculado à recusa, mas sem as consequências legais da justa causa), poderia ser considerada como medida discriminatória, ou se enquadraria nas vedações autorizadas no julgado do STF?
O tema é polêmico e a dispensa por justa causa de empregado por recusa à vacinação, ainda que se deseje o contrário, é, no mínimo, de defesa bastante temerária, carece de respaldo diante da ausência de previsão legal que a assegure, podendo ser considerada abusiva e discriminatória por ofensa a princípios constitucionais previstos no artigo 5º da Constituição Federal. Mas ainda há muito a ser pacificado quanto às questões relativas ao tema em tela.
*Gláucia Massoni, especialista em Direito do Trabalho, é sócia do escritório Fragata e Antunes Advogados e responsável pelo Comitê de LGPD da banca
*Alberto de Carvalho, especialista em Direito do Trabalho, é sócio do Fragata e Antunes Advogados