Opinião

Empresa não pode ser punida por ato de gestor

Empregos e relação comercial da pessoa jurídica devem ser preservados, diz advogado

30 de março de 2020

Por Daniel Gerber

Artigo publicado originalmente no Estadão

As empresas no Brasil têm enfrentado profundos danos econômicos cada vez que seus gestores são investigados pela prática de delitos. Nem adianta a dogmática bradar que, pelo sistema jurídico brasileiro, a criminalização da pessoa jurídica é medida excepcional, pois a Operação Lava Jato explicitou, empiricamente, a relação umbilical do direito administrativo sancionador com o direito penal – e, consequentemente, a incidência – “de fato” – de variadas sanções criminais sobre a pessoa jurídica.

Muitos chegaram à conclusão, inclusive, de que uma sanção penal incidente sobre o “criminoso” se tornou incrivelmente mais benéfica do que uma sanção administrativa/cível imposta à PJ.

Em virtude das pesadas multas envolvidas em acordos de leniência, com o natural esgotamento econômico das empresas utilizadas nas atividades criminosas delatadas por seus integrantes de alto escalão, é preciso fazer algumas ponderações, a começar pela evidente impossibilidade de se pensar em uma defesa criminal de pessoas físicas investigadas por causa de suas funções empresariais, sem, primeiro se estabelecer com o Poder Público, em todas suas instâncias e instituições vinculadas ao caso, uma objetiva delimitação dos poderes gerais de punir a serem analisados, negociados e aplicados ao caso concreto.

Que se puna o agente do ilícito, e não centenas de outras pessoas que dependem, para sustento de suas famílias, do emprego e da relação comercial com a pessoa jurídica mal utilizada. Esse é, pelo menos, o mantra a ser seguido.

Significa dizer, por exemplo, que em caso de colaborações premiadas, acordos de não persecução ou litígio propriamente dito, tanto o poder persecutório penal e administrativo (MP, MPF, AGU, etc.) quanto o Poder Judiciário devem chegar a um consenso sobre como será tratada a PJ, independentemente de como serão tratados seus gestores.

Ela será encarada como mera extensão de seu titular e simples mascaramento de sua atividade criminosa? Ou será uma pessoa jurídica que, apesar das suspeitas que eventualmente se erguem contra seu(s) mandatário(s), detém independência e gera renda, empregos e circulação de serviços ou mercadoria? Essa distinção é fundamental, seja para bloquear tentativas de se passar para a pessoa jurídica a real responsabilidade de custear o processo e suas penas pecuniárias, seja para se evitar um dano social mais grave que o próprio delito.

Tem sido comum o requerimento – e seu respectivo deferimento – de medida cautelar por parte do Ministério Público, tanto em inquéritos penais quanto administrativos, objetivando bloqueio de bens e valores da empresa, tanto para (a) garantir ressarcimento de danos quanto para (b) satisfação de eventual pena pecuniária que surja de decisão condenatória transitada em julgado.

Também é corriqueiro, quando os delitos analisados envolvem a relação de uma empresa com o Poder Público, se (c) estimar como “dano” o valor total recebido pela pessoa jurídica durante a vigência do contrato.
Tais premissas e objetivos não são, contudo, dogmaticamente sustentáveis.

Primeiro, como se obrigar a pessoa jurídica a ressarcir um “dano” que surge, por exemplo, de uma fraude ao procedimento licitatório mediante corrupção de agente público, se, no curso da prestação de serviço, todos os indicadores de produtividade e preço estiverem satisfatórios? Que dano seria esse, na medida em que prestado o serviço, e pelo preço correto?

Ora, o dano que surge pela prática de um delito contra a lei de licitações, no exemplo acima trabalhado, não é estimável – e muito menos público, restringindo-se ao prejuízo causado para eventuais concorrentes que não venceram o certame (cabendo a elas eventual ação em esfera cível). O dano contra a administração, por sua vez (na corrupção de funcionário público), não é financeiro propriamente dito e, à toda evidência, não deve ultrapassar a pessoa de quem pratica o ato.

Retoma-se a questão, portanto: que dano a pessoa jurídica teria causado, apto a justificar o bloqueio de seu patrimônio?

A dogmática fica ainda mais maltratada quando se fala de bloqueio de valores para garantia de hipotético pagamento de pena de multa, pois bloquear-se valores da pessoa jurídica por crime praticado por pessoa física é, literalmente, ultrapassar, na pena, a pessoa do eventual condenado.

O tiro de misericórdia na técnica jurídica, entretanto, está no último ponto que aqui debatemos: se o serviço foi prestado (estando a fraude de nosso exemplo no momento pré-contratual), como afirmar que o dano está representado pela totalidade dos valores recebidos da administração pública? Vamos ignorar que mais de 90% do que as empresas recebem vai para pagamento de folha salarial, impostos, fornecedores? Na questão dos impostos, inclusive, como inclui-los no cálculo do montante total do dano, se o valor foi recolhido ao próprio Estado?

Essas circunstâncias exigem constante atenção e diálogo – mesmo em processos não negociais – dos atores processuais (advogado, juiz, promotor, procurador, etc.) envolvidos na lide. Não se pode confundir o capital da empresa com o de seu gestor – mesmo nas hipóteses de companhia limitada onde ele represente 99% das cotas sociais. Isso porque o valor da conta não é do sócio, do gestor, do executivo, e, sim, de funcionários e colaboradores que não devem sofrer pelo delito praticado por superior hierárquico. Sigamos evoluindo, sempre. Que se combata o corrupto sem se sacrificar o inocente.

Daniel Gerber é advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, sócio-fundador dos escritórios Daniel Gerber Advogados Associados (Brasília-DF, Porto Alegre -RS) e Gerber & Guimarães Advogados Associados (Palmas -TO)

 

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