Opinião

Discrepância entre gêneros permanece

Figura da mulher envelopa percepções coletivas difíceis de exorcizar

9 de novembro de 2020

Por Raquel Xavier Vieira Braga*

Artigo publicado originalmente no Estadão

O gênero feminino atravessou grandes mudanças na história da humanidade, desde atribuições de estereótipos extremistas (santa ou pecadora) e da invisibilidade acachapante, até grandes transformações, como a emancipação das mulheres no século passado. Esta última foi uma das maiores conquistas da civilização em prol da expansão das liberdades e das oportunidades de acesso à educação e ao mercado de trabalho, alavancadores da independência e participação ativa da mulher na família, nos negócios e nos espaços públicos da democracia. Todavia, isso não quer dizer que os problemas de gênero estão solucionados. Seria ingênuo tal cogitação. A figura da mulher e tudo o que ela representa envelopa percepções coletivas difíceis de exorcizar.

No contexto cultural brasileiro, a preferência pelos meninos, rapazes, homens e senhores possui matriz genealógica. De acordo com o Livro V, Título XXXVIII das Ordenações Filipinas, se o homem casado encontrasse sua mulher em adultério, licitamente poderia matar a ela e ao adúltero, salvo se o adúltero fosse “desembargador ou pessoa de maior qualidade.” No artigo 6º, II do Código Civil de 1916, as mulheres casadas eram relativamente incapazes, regência que só foi modificada em 1962, com o advento do Estatuto da Mulher Casada. Mais à frente, no mesmo Código, constava expressamente no artigo 233 que “o marido é o chefe da sociedade conjugal” e o artigo 242 estipulava uma série de condutas que a mulher não poderia tomar sem autorização do marido, como alienar direitos e imóveis, aceitar ou repudiar herança ou legado, litigar em juízo civil e comercial, exercer profissão. Retrato da dinâmica social da época. A lei do divórcio só chegou em 1977. Pouco tempo.

Por falar em década de 70, o crime da praia dos ossos marcou a história brasileira com o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street. Trabalho memorável dos grandes advogados Evaristo de Moraes Filho, na defesa do réu, e Evandro Lins e Silva na assistência de acusação. Evandro Lins e Silva ocupou o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal de 1963 a 1969, quando foi aposentado compulsoriamente por força do AI-5. Evaristo de Moraes Filho conquistou o júri com a alegação de que a vítima teria se suicidado pelas mãos do réu. A vítima, no caso, levou quatro tiros no rosto. O julgamento foi emblemático, em especial o primeiro, ocorrido em 1980, cujo resultado permitiu que o réu saísse de lá caminhando livremente. O destaque, em se tratando de abordagem de gênero, vai para o perceptível fato de que quem estava sendo julgada era a falecida socialite por seu estilo de vida e seu comportamento no passado. Foi uma mulher bela, vibrante, destemida e ousada.

Oito anos depois, nasce a Constituição Federal de 1988, modificando um pouco as coisas. Entram em cena os direitos fundamentais. A mulher trabalha, namora, se divorcia. Fala-se no direito de não se casar e no direito de esquecer. Discute-se a questão do aborto no Poder Judiciário e a mulher está no centro de importantes políticas públicas.

No plano internacional, destaca-se na Europa a Estratégia Europeia de Emprego (EEE), tendo como um dos pilares a igualdade de gênero. Com participação brasileira, há a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW – Assembleia Geral da ONU, 1979), o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 da Agenda 2030 (ODS 5), que busca promover a igualdade de gênero. Também há o Desenvolvimento do Milênio 5 e o programa conjunto entre a ONU Mulheres e o Comitê Olímpico Nacional “Uma Vitória Leva à Outra”, em parceria com as ONGs Women Win e Empodera.

Na União Europeia, foi lançada a Estratégia de Igualdade de Gênero 2020-2025, para realizar progressos significativos até 2025. Os objetivos principais são acabar com a violência de gênero, desafiar estereótipos, preencher lacunas no mercado de trabalho, promover participação igualitária em diferentes segmentos da economia, abordar as disparidades de remuneração por gênero e alcançar equilíbrio de gênero na arena política.

No panorama constitucional, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se mostra sensível ao reconhecer os direitos fundamentais da mulher, notadamente nas questões de interrupção de gravidez (ADPF n.º 54/DF e HC n.º 124.306/RJ) e no cuidado das mães e gestantes presas (HC n.º 143.641).

É chegada uma nova era? Às vezes parece que sim, às vezes não. O recente caso da Mari Ferrer mostra que a sociedade brasileira vive de avanços e retrocessos, vacilando entre um expediente contemporâneo e as tradições dos anos dourados. As pessoas titubeiam, se atrapalham, muitas vezes não sabem o que fazer com o inconsciente coletivo, tampouco com a própria consciência coletiva. O tratamento recebido pela jovem Mari Ferrer durante o julgamento mostra a incapacidade das pessoas que compõem o ambiente institucional (ao menos aqueles operadores do direito – juiz, membro do MP, advogado de defesa – que participaram do julgamento) de lidar com questões de gênero.

A raiz histórica da discrepância de tratamento por causa do gênero não será extraída facilmente.

*Raquel Xavier Vieira Braga é advogada em Brasília do escritório Marcelo Leal Advogados Associados, doutoranda em Direito no UniCEUB, mestra em Direito pela UFRGS, especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas em Porto Alegre e em Direito Empresarial pela UFRGS

 

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